Manhã cedo, um ruído de fechadura a abrir, o
portão a bater, eis que lá vai a minha vizinha. Aqui na rua chamam-lhe a
trombuda. Nunca foi vista a falar com ninguém e todos a conhecemos maquilhada
de uma azedume digno de merecer tratamento nas consultas da especialidade.
Coitada. É todos os dias isto. Só muda o horário. Há aqueles em que o faz à
tarde, e outros ainda já noite fechada. Corre. Ela não o diz assim. Reparei uma
vez, no café, depois de pedir a bica que toma antes de ir trabalhar. Chama-lhe
jogging. Quem a vir é bem capaz de a julgar patrocinada pelo Lidl. Mas não, aproveitou
apenas as promoções e, juntamente com o garrafão de água da nascente, a ração
para o gato, os pensos da Evax e os yogurts naturais, trouxe também os ténis, as
calças e a t-shirt. Já me tenho cruzado com ela neste preparo e sei que leva a
coisa a sério. Transpira. Sofre dores musculares. Esgotamentos respiratórios.
Mas, não pára nem nas passadeiras, onde continua a marcar passo até que o verde
caia. Tal como não evita as subidas nem procura as descidas. Alheia a quem quer
que a saúde ou que reconhecendo-a a cumprimente, ela lá prossegue determinada.
Uma hora e meia. Outras vezes duas. Corre como se isso fosse castigo.
Ocasionalmente junta-se a outros colegas. Já os tenho visto às compras na
praça. Um grupinho de três ou quatro. Parecem-me todos cheios de artroses. A
coxear até, que eu bem reparei. Depois, certamente às sextas-feiras à noite,
passa-lhes. E, sábado de manhãzinha, bem cedo, lá vão eles outra vez. Dar cabo dos
músculos e dos tendões que ainda tenham bons. Então, já mais tarde, banhos
tomados e vidas retomadas à mesma velocidade a que eu levo a minha; ou seja, a
passo. Certamente já nos seus empregos, ei-los que dedicam também algumas horas
a uma outra actividade desportiva. Divulgar nos seus sítios das redes sociais
as fotos que tiraram uns aos outros. É curioso que fico sempre na dúvida a qual
das actividades dediquem maior empenho. A minha vizinha é rigorosa com os
tempos. Os outros dedicam-se às distâncias, às condições atmosféricas, aos resultados
e aos nomes das provas em que participam. Falam de lesões e dos seus
desempenhos de um modo que não os vejo comentar as demais desgraças do viver ou
dos anseios que lhes conheço. Já pensei que não lhes sobre tempo para tal. Ou
que se esgotem as forças no cansaço com que fazem com as pernas o que a vida
lhes exigia que fizessem em sociedade, ou com as famílias. Mas, vocês sabem, o
tempo não chega para tudo. Na dúvida (ou na hesitação da escolha, sei lá), e desde
que assim se possam exibir, em fotos amplamente difundidas na rede, preferem correr
para alcançar um porvir que lhes permita morrer cheios de saúde, a deixar de
viver assim, unidos na confraria de infelizes que integram.
Sem comentários:
Enviar um comentário