Nada
nele me chamaria a atenção não fosse o destino ter-nos cruzado por duas vezes,
no mesmo dia, num curto espaço de tempo. A primeira, na estação de serviço, na
mesma fila, onde ambos nos dispúnhamos a pré-pagar o combustível. Ele, atendido
na minha frente, ter-me-ia passado despercebido não fosse o tom interrogativo
do empregado: bomba 3, gasóleo, cinco euros? Sim, respondeu-lhe numa voz
sumida, ao mesmo tempo que entrega algumas moedas. Recolhido o talão, saiu,
quase invisível, discreto como uma sombra.
Vocês sabem, não é? Há muitas maneiras de ser discreto. A dele era
diferente das outras, mais intensa. Voltei a confirmá-lo de seguida, já no
exterior, ao sair para me abastecer. Lá está ele, na bomba 3, agora a retirar
do bolso a chave e a abrir a porta do Audi estacionado na sua frente. Matrícula
de 2012, reparei ainda. Depois,
mansamente, o prosseguir do dia encarregar-se-ia de apagar-me da memória aquele
episódio, juntando-o a tantos outros que, após vividos, devem cair para dentro
do abismo do tempo. No entanto não foi assim. E, raio de destino, horas depois,
a uns quilómetros dali, no parque de estacionamento junto à farmácia, atrai-me
a atenção alguém que se agacha, junto aos carros, uns metros à frente. Um gesto breve ao qual não dei mais que um distraído
reparo. Alguém que me parecia mexer nos
sapatos. Castanhos, de vela. Como se
sofresse do seu aperto. Na mão um saco
de plástico. Branco. Com rótulo de supermercado. Mas, não era esse o motivo. Só
o percebi depois, quando o voltei a ver inclinado. Agora sim, reparo que leva a
mão ao chão. Um gesto que reconheci.
Apanhou uma beata. Num segundo estuda-lhe o estado, o tamanho e volta a erguer-se
recolhendo-a no bolso. É então que me olha nos olhos, como quem mostra não
estar alheio ao que se passa à sua volta. Reconheço-o de imediato ao mesmo
tempo que o vejo tomar a direcção do parque, por entre os carros. Subitamente parou. Estacionado na sua frente de novo o A4 onde
já entra. Atirado o saco de plástico para o lugar do lado vejo-o iniciar a
marcha. Primeiro atrás, depois em frente. Passa agora por mim permitindo-me
perceber-lhe o olhar distraído, dedicado às examinações da apertada manobra.
Talvez concentrado no peso da vida que leva oculto no bolso. Sinais que não enganam numa sociedade em
crise de valores.
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