sábado, 22 de fevereiro de 2014

A4

Nada nele me chamaria a atenção não fosse o destino ter-nos cruzado por duas vezes, no mesmo dia, num curto espaço de tempo. A primeira, na estação de serviço, na mesma fila, onde ambos nos dispúnhamos a pré-pagar o combustível. Ele, atendido na minha frente, ter-me-ia passado despercebido não fosse o tom interrogativo do empregado: bomba 3, gasóleo, cinco euros? Sim, respondeu-lhe numa voz sumida, ao mesmo tempo que entrega algumas moedas. Recolhido o talão, saiu, quase invisível, discreto como uma sombra.  Vocês sabem, não é? Há muitas maneiras de ser discreto. A dele era diferente das outras, mais intensa. Voltei a confirmá-lo de seguida, já no exterior, ao sair para me abastecer. Lá está ele, na bomba 3, agora a retirar do bolso a chave e a abrir a porta do Audi estacionado na sua frente. Matrícula de 2012, reparei ainda.  Depois, mansamente, o prosseguir do dia encarregar-se-ia de apagar-me da memória aquele episódio, juntando-o a tantos outros que, após vividos, devem cair para dentro do abismo do tempo. No entanto não foi assim. E, raio de destino, horas depois, a uns quilómetros dali, no parque de estacionamento junto à farmácia, atrai-me a atenção alguém que se agacha, junto aos carros, uns metros à frente.  Um gesto breve  ao qual não dei mais que um distraído reparo.   Alguém que me parecia mexer nos sapatos. Castanhos, de vela.  Como se sofresse do seu aperto.  Na mão um saco de plástico. Branco. Com rótulo de supermercado. Mas, não era esse o motivo. Só o percebi depois, quando o voltei a ver inclinado. Agora sim, reparo que leva a mão ao chão.  Um gesto que reconheci. Apanhou uma beata. Num segundo estuda-lhe o estado, o tamanho e volta a erguer-se recolhendo-a no bolso. É então que me olha nos olhos, como quem mostra não estar alheio ao que se passa à sua volta. Reconheço-o de imediato ao mesmo tempo que o vejo tomar a direcção do parque, por entre os carros.  Subitamente parou.  Estacionado na sua frente de novo o A4 onde já entra. Atirado o saco de plástico para o lugar do lado vejo-o iniciar a marcha. Primeiro atrás, depois em frente. Passa agora por mim permitindo-me perceber-lhe o olhar distraído, dedicado às examinações da apertada manobra. Talvez concentrado no peso da vida que leva oculto no bolso.  Sinais que não enganam numa sociedade em crise de valores.   

Sem comentários: