Há dias em que ainda aqui não cheguei e já o texto escrito. Começa
a escrever-se a qualquer hora, nas mais insólitas circunstâncias, como se
animado duma vontade própria. Tantas vezes as palavras a escorrer e eu sem as
conseguir estancar. Um café Senhor António. Cheio. Sempre de trombas o Senhor
António. Discute com as empregadas sem se sentir inibido com a presença dos
clientes. Já as tenho visto até chorar. Disfarçadamente. Como acontece nos
textos, em que o choro das palavras é condição prévia para o sucesso do
escrito. Uma vez reparei numa, na cozinha, as lágrimas a cair e ela sem as
conseguir conter. Naquele dia até a sopa me pareceu mais salgada. De que é a
sopa Senhor António? Creme de legumes, responde. Sempre de trombas o Senhor
António. Hoje, vinha pelo caminho, o sol de frente a incomodar-me os contornos
da estrada, e sentia o texto a escrever-se. Espesso como creme de legumes.
Talvez menos salgado. A cozinheira hoje não chorou. Arranja-me gelo Senhor
António, que o creme escalda. E ele,
solícito, serviu-me logo três cubos, num pires. Tenho a certeza que o faz (o gelo)
com o ódio que lhe escorre sem se esgotar. Como este texto, a formar-se sozinho,
sem mim e sem cessar.
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