Ontem dormiram cá os petizes. O infante mais
velho, comigo. O bébézão, com a avó, no ex-quarto
da mãe, agora convertido em quarto dos netos. Antes de adormecer, por entre as distraídas
imagens do Corcunda de Notre Dame que passava na TV e que ele já via pela enésima
vez, fomos trocando impressões sobre algumas das cenas. Só as que lhe faziam
mais confusão, digamos assim. Sim, porque isto de ver as estátuas a falar causa
dúvidas em qualquer cabeça de 5 anos. Já viste avô, que as estátuas falam com
ele?, foi a pergunta que despoletou o nosso diálogo. O desgraçado do miúdo
arranja-me sempre com cada imbróglio para as noites de Páscoa. Bom, lá me muni
dos meus melhores brios (nem imaginam os piores) e bem ou mal dispus-me a
explicar-lhe o que estava a ver. Isto, claro, em linguagem que ele pudesse
digerir, sem necessidade de guia-intérprete e evitando os yas, os bués e os
fixes do seu habitual dialecto. E assim
foi a coisa. Consegui passar-lhe a minha história, sobre os efeitos da cinematografia e os buracos negros das ilusões
que ela nos provoca, sem lhe destruir a capacidade de encantamento que qualquer
puto deve conservar enquanto não descobrir que a fantasia é uma coisa sem pingo
de capacidade emocional quando é vista assim, pelo lado da costura e dos pospontos.
No entanto, apesar das duas ou três vezes em que me franziu a testa e me olhou
meio de esguelha, achei-o bem mais convencido do que quando na semana anterior,
durante as compras do Jumbo, apontando para a prateleira dos pensos higiénicos
da Evax, me informou: olha avô, às vezes a minha mãe põe coisos destes dentro
das cuecas, disse ele, fazendo um gesto a imitar a descrição. E eu, que curto
bué estas saídas dos putos, capazes de me deixarem a imaginação quatro dias a
sangrar, só tive discernimento para lhe fazer derivar a atenção e perguntar: sabes
a que horas joga o Benfica amanhã? E ele, que não sabia (é claro), lá tratou de
me aquietar: não, mas o meu pai sabe de certeza. E lá se concentrou de novo na
playstation, indiferente aos gritos e às unhadas com que eu me autoflagelava enquanto
amaldiçoei a minha falta de preparação
para ser avô.
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