sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

filantropia, trevas e miséria

Apesar do esforço que faço em compreender a miséria e, sendo caso disso, por aceitar o que a gerou, há dias em que a sinto à minha volta tão intensa e viva como se ambos estivéssemos lado a lado, quase a tocarmo-nos, em movimento centrífugo, que é como diz: no mesmo carrossel. Nessas ocasiões é costume instalar-se, e ficar por ali uns tempos, um desconforto com que não sei lidar. Ouvir incrédulo os mais insanos disparates ditos assim, por alguém que foi aceite, e portanto integra, os mais insuspeitos órgãos da sociedade, devia ser já castigo que chegasse. Porém, não é assim. Quando a lástima inunda o meu aterro,  em todas as visitas que me faz, nunca é temporário o estrago que provoca.  Vou levar meses até recuperar a seriedade com que olhava para as virtudes e para o mais fraternal altruísmo. Louvado seja.   

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

pessoas comuns

Há dias em que ainda aqui não cheguei e já o texto escrito. Começa a escrever-se a qualquer hora, nas mais insólitas circunstâncias, como se animado duma vontade própria. Tantas vezes as palavras a escorrer e eu sem as conseguir estancar. Um café Senhor António. Cheio. Sempre de trombas o Senhor António. Discute com as empregadas sem se sentir inibido com a presença dos clientes. Já as tenho visto até chorar. Disfarçadamente. Como acontece nos textos, em que o choro das palavras é condição prévia para o sucesso do escrito. Uma vez reparei numa, na cozinha, as lágrimas a cair e ela sem as conseguir conter. Naquele dia até a sopa me pareceu mais salgada. De que é a sopa Senhor António? Creme de legumes, responde. Sempre de trombas o Senhor António. Hoje, vinha pelo caminho, o sol de frente a incomodar-me os contornos da estrada, e sentia o texto a escrever-se. Espesso como creme de legumes. Talvez menos salgado. A cozinheira hoje não chorou. Arranja-me gelo Senhor António, que o creme escalda.  E ele, solícito, serviu-me logo três cubos, num pires. Tenho a certeza que o faz (o gelo) com o ódio que lhe escorre sem se esgotar. Como este texto, a formar-se sozinho, sem mim e sem cessar.    

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

relações improváveis

Recordo o nosso primeiro encontro. Um encontro breve e fugaz em que falaram mais os olhos que as bocas. Depois, fosse por que umas vezes gostamos, outras vezes não, despedimo-nos com um entusiasmo fingido e promessas de até um dia destes, que não iremos cumprir.

Há encontros assim, feitos de coisa nenhuma, autênticos desacertos de enredos, cheios de razões para que não tivessem acontecido.


É por isso que, diga-se o que se disser, a verdade a que não podemos fugir é que só gostamos verdadeiramente de alguém quando gostamos também dos seus defeitos. Não era o caso. 

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

contradição no seio da felicidade (fig)

O tempo que aqui perco, nesta ilusão de fortuna, só vale o preço que não pago em prazeres mais dispendiosos. (Não, não é da banca do casino que falo. São outros jogos de azar. Ou de má sorte, sei lá!) 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ao engano

Não é a primeira vez que deixo a meio um vinho cujo sabor não me agrada. Ultimamente, é muito estranho, tem-me acontecido com uma frequência notável. Quase sempre com as garrafas mais caras. O que deixa no palato um acentuado travo a desperdício. No entanto, é curioso (e sintomático), raros são os maus vinhos que me desiludem. Provo-os e, das duas uma, ou os cuspo de imediato e passamos a outro, ou já sabemos a que vai ficar a dever-se a cabeça pesada, amanhã ao acordar.  Já com os bons é ao contrário, pois raros e escassos estão a tornar-se os capazes de me brindar com excitação (e vontade) suficiente para que os inclua nos repastos a que são chamados. Decididamente a enologia é uma ciência cheia destas armadilhas. Pior, começo mesmo a achar que há uma qualquer paridade entre a literatura e as Grandes Reservas etílicas. Com uma e outras sempre prontas a cobrar-nos preços demasiado altos para consolos demasiado efémeros. Assim, na dúvida, amanhã vou voltar ao Lobo Antunes e (juro) vou acompanhar o rodízio de peixe assado do almoço com um penalti de água da nascente. 

domingo, 23 de fevereiro de 2014

compulsão



Há uns bons anos que trago comigo um hábito ao qual dedico uma certa fidelidade de podengo. O de esgotar a leitura (leia-se, consumir toda a obra) dos escritores que me são favoritos.

Comecei  a dar-me conta dele com o Gabriel Gracía Márquez (a minha primeira vítima) e depois, ao passar pelo Saramago (de quem me saturei a meio obrigando-me a fazer um intervalo), ou mais tarde pelo J.M.Coetze, num longo período em que sofri de uma assumida avidez no consumo de nobéis, depressa me apercebi que o mal se tinha instalado.

E, se é verdade que se trata duma mania que  faz um efeito monótono nas prateleiras das estantes, há que dizê-lo, recupera-se desse prejuízo com o entusiasmante prazer de podermos continuamente saciar o agrado.


Ora, foi também assim que me tornei viciado em José Rentes de Carvalho de quem tenho compulsivamente consumido tudo o que me passa ao alcance da mão.  E, tudo isto para vos dizer da forma implacável como a adição se manifesta, fazendo-me andar aqui já há uns dias a previr a chegada do anunciado «Portugal A Flor e a Foice»

É muito sofrida a vida de um ansioso consumidor, acreditem.

sábado, 22 de fevereiro de 2014

A4

Nada nele me chamaria a atenção não fosse o destino ter-nos cruzado por duas vezes, no mesmo dia, num curto espaço de tempo. A primeira, na estação de serviço, na mesma fila, onde ambos nos dispúnhamos a pré-pagar o combustível. Ele, atendido na minha frente, ter-me-ia passado despercebido não fosse o tom interrogativo do empregado: bomba 3, gasóleo, cinco euros? Sim, respondeu-lhe numa voz sumida, ao mesmo tempo que entrega algumas moedas. Recolhido o talão, saiu, quase invisível, discreto como uma sombra.  Vocês sabem, não é? Há muitas maneiras de ser discreto. A dele era diferente das outras, mais intensa. Voltei a confirmá-lo de seguida, já no exterior, ao sair para me abastecer. Lá está ele, na bomba 3, agora a retirar do bolso a chave e a abrir a porta do Audi estacionado na sua frente. Matrícula de 2012, reparei ainda.  Depois, mansamente, o prosseguir do dia encarregar-se-ia de apagar-me da memória aquele episódio, juntando-o a tantos outros que, após vividos, devem cair para dentro do abismo do tempo. No entanto não foi assim. E, raio de destino, horas depois, a uns quilómetros dali, no parque de estacionamento junto à farmácia, atrai-me a atenção alguém que se agacha, junto aos carros, uns metros à frente.  Um gesto breve  ao qual não dei mais que um distraído reparo.   Alguém que me parecia mexer nos sapatos. Castanhos, de vela.  Como se sofresse do seu aperto.  Na mão um saco de plástico. Branco. Com rótulo de supermercado. Mas, não era esse o motivo. Só o percebi depois, quando o voltei a ver inclinado. Agora sim, reparo que leva a mão ao chão.  Um gesto que reconheci. Apanhou uma beata. Num segundo estuda-lhe o estado, o tamanho e volta a erguer-se recolhendo-a no bolso. É então que me olha nos olhos, como quem mostra não estar alheio ao que se passa à sua volta. Reconheço-o de imediato ao mesmo tempo que o vejo tomar a direcção do parque, por entre os carros.  Subitamente parou.  Estacionado na sua frente de novo o A4 onde já entra. Atirado o saco de plástico para o lugar do lado vejo-o iniciar a marcha. Primeiro atrás, depois em frente. Passa agora por mim permitindo-me perceber-lhe o olhar distraído, dedicado às examinações da apertada manobra. Talvez concentrado no peso da vida que leva oculto no bolso.  Sinais que não enganam numa sociedade em crise de valores.   

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

repouso de príncipe


Não são muitos os locais onde consigo dar descanso às minhas humanas inquietações. Digamos que são meia dúzia deles, pouco mais. Este, da foto, é um daqueles onde só à custa do sacrifício físico consigo dar descanso à alma. No fundo é uma espécie de negociação,  mediante a qual extraio do meu hóbi de aprendiz da faina agrícola o indispensável bem estar onde poiso o cansaço que me permite levitar acima dos astros e das mais sofridas preocupações.    

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

mete dó

Não entendo. Não entendo eu e vá lá alguém entendê-lo. Tenho um acumulado de vezes (mais vasto que o universo) em que me pergunto o que faço aqui. A muitas delas sucederam-se já um sem-número de dias envoltos nas mais escuras sombras da ausência.  Mas, a conclusão é sempre a mesma. Estar fora disto faz-me mais mal que bem.  É por isso que quando saio quero logo voltar. Até mete dó esta minha tendência para a adição.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

a tormenta do costume

Adoro o mês de Fevereiro (e o Março idem). O telemóvel continuamente a escancarar-me a vida como uma porta sem trinco. Todos a pedir ajuda, um bocado da alma a preço de saldo, um favorzeco fiscal, o esclarecimento de umas dúvidas. Não é para mim, é para a vizinha, dizem uns. Outros, expressam apenas gratidão: não te chateio mais, prometo. E voltam para o ano. Essa é uma certeza tão densa e inabalável como o peso do cimento. Fico parvo com a lata de ambos. Adoro ficar parvo em Fevereiro e Março.

(ex)xexo

Dizem as Nações Unidas que a sexualidade é essencial à felicidade de qualquer pessoa. 

Sim, mas já não há quem resista aos excessos da libido do Governo, bolas!   

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

quem foi que disse que ninguém desce vivo de uma cruz?

Esta noite, sem que nada o fizesse prever, caí do crucifixo. Primeiro soltou-se-me uma mão, depois a outra e, catrapuz. Com as ventas no chão acabaram por se soltar também os pés. Confesso que tinha em mente um ressuscitar mais digno. Porque tinha mesmo. Sei lá, talvez tivesse aquela ambição das superproduções e essas coisas assim, acompanhadas de uma certa aura de grandiosidade. Afinal a pelintrice e a precaridade do triste momento ficou também ela reduzida à minha dimensão. E,  como se não bastasse, nem sequer serviram de muito os cuidados de andor de procissão com que me transportaram até aqui. De tal sorte que, sem dar por ela, ao sabor de uma noite de insónia e de torpor, naquele estado de vigília semi-acordado sem que o alívio do sono me acudisse, dei por mim e em vez de subir ao céu, desci ao chão. Tão instável o equilíbrio de um anjo quando finalmente adormece na cruz, não é?

domingo, 16 de fevereiro de 2014

consta que...

Consta que a prática psiquiátrica está a ficar atulhada de episódios que nascem ou migram para lá oriundos dos novos ambientes informáticos. Quem havia de dizer que ligados online desligamos da realidade e entramos em modo desarranjo?! Ó sorte, só me saem disfunções. 

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

continuum repetido

Por aqui e por ali, em busca de coisas novas que não encontro. Por aqui e por ali, tudo o que brilha é pelo efeito da repetição. 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

auto-retrato (em busca do melhor ângulo para o...)

Os portugueses lêem pouco e escrevem mal.  Quase sempre porque estão demasiado ocupados com leitura que não presta ou a escrever para quem os não lê.  Tudo coisas que se conjuram para fazer de nós os asnos que julgamos não ser.  

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

tão precária a imortalidade

É verdade, era para vos ter dito e depois passou-me. Efeitos do bolor do esquecimento, certamente. Na semana passada faleceu o Sr. Director. Aquele que era mesmo, sim. Não o outro, que gostaria de ter sido.  Creio que a coisa aconteceu às mãos de uma daquelas doenças que nos aproximam da morte em menos de uns meses.  Dois ou três, ao que parece. A passar tão depressa o pouco que lhe restava de vida. Até que… Quem havia de dizer! Logo ele que nos havia chegado com aquele seu porte imortal.  Solene e rígido. Disposto a 'arrumar a casa', como então se disse quando nos informaram ao que vinha. Ele que nos chegou ainda vivo. E afinal, que tristeza este desfecho. Este concluir  que a morte é mais do que um boato.  Que não é como as más digestões. Algo que nos passe amanhã ou depois. E, o que é pior de tudo, que nunca vem na hora esperada. Mesmo quando já estamos à sua espera. Finalmente a paz Sr Director. Só espero que ela o tenha libertado de todos os pesos e todas as torturas. Pareciam ser tantos. Afinal, quem havia de dizer, é ela que nos torna todos iguais. Não é?

domingo, 9 de fevereiro de 2014

do prazer da escrita à incapacidade de aprender (distância que cria distância)

Sinceramente não se percebe como é que gostando tanto de escrever o faça tão mal. A cada (re)leitura do que antes escrevi responde-me sempre um erro, um engano, uma ignorância, um disparate. O que me vale é que funciona como válvula de escape, dessa miséria que me atormenta o espírito, a forma magistral com que compõem os autores que leio. Quem me dera pudesse fluir uma pitadinha dessa osmose.