quinta-feira, 20 de agosto de 2015

meia-idade

É patético de ver aquele espectáculo. Cansativo até. Todos ali predispostos a desvendar a perfeição de que já foram feitos, há muitos (muitos) anos. Vivendo naquilo meses e meses de exaustiva repetição. Olha eu, como já fui. Olha eu agora, como sou hoje. Tornam-se, assim, cúmplices das suas melancolias, repartindo-as uns com os outros, expondo-as como se fosse vaidade (vaidade de quê?) o que os leva a fazê-lo daquela forma.

- Que bonita rapariga!
- Sou eu.
- Não! Não pode ser. Foste assim?

E ela, que mal sobrevive aquilo, quase em lágrimas, envergonhada do passo em falso que deu ao mostrar assim ao mundo a sua actual feiura. Como se fosse uma montra o espaço que os acolhe, ei-los sentados junto ao vidro, à espera do que não virá. Mostram as belezas que já foram em contraste com os camafeus (e os canastrões) em que nos tornámos. Meses e meses naquilo. Quem mal repare é bem capaz de nem perceber porque o fazem, a intenção que os anima, ou, vá lá saber-se, onde querem chegar e não chegam.

Enfim! Não param de me surpreender as variações sobre o masoquismo de que são feitas certas vidas, de certas pessoas, cegas à imagem a que o tempo as transmutou. Ignorando que há coisas (tantas) que é melhor esquecer que recordar.


Ou, como  diz um dos deuses com os quais partilho estas (e outras) confissões - é a meia-idade.  Coitados de nós. 

sábado, 8 de agosto de 2015

sofridas e frustradas satisfações

Ela deve ter começado de pequenina a gostar de tintas, telas, tecidos, texturas. Ao longo da adolescência, mais pela prática ocasional do que por via de orientada formação, continuou ligada aqueles materiais. Não muito, só mesmo o indispensável. Comprava-os, experimentava-os, estragava-os. Mais tarde entrou para o ensino onde terá aperfeiçoado parte do pouco que até ali aprendera. Pelo meio conheci-lhe alguns propósitos de negócio, todos mal sucedidos diga-se, como quem tentava fazer disso um modo de vida. Até que, há uns anos, a sua imprevista saída da cidade a acabou por integrar no meio humilde da província onde a vim reencontrar. É lá que me apercebo como o seu curriculum cresceu, tal qual os estados de delírio a que as febres altas (e as frustrações, ao que parece) nos conduzem. Tornou-se directora disto e daqueloutro, presidenta do que mais possam imaginar, laureada com prémios concedidos a méritos tão duvidosos como a cegueira e o bom gosto de quem os atribuiu. Hoje, pouco mais é que a  imagem de marca dos desenganos a que a vida nos conduz quando a levamos fútil e sem outra chama que não seja a ostentação. Onde quer que a veja é certo que exibirá, atrás de si, a cauda de cometa daquilo a que pomposamente chama a sua vasta obra. Subprodutos do que se esforça por plagiar, manipulações contranatura de peças e técnicas que resultam cândidas de infantilidade, inocentes de habilidade. Radiosa é como a encontro sempre que acidentalmente nos cruzamos. Trocamos dois beijos, perguntamos se está tudo bem, uma frase sobre as famílias e, à primeira deixa, eis que já me fala de si, como quem dá a saber que, mercê do estatuto artístico da talentosa criatura que tenho na frente, talvez não fosse despropósito solicitar-lhe um autógrafo. Finalmente, em jeito de despedida, ainda me informa do local, dia e hora, onde irá decorrer mais uma das suas exposições. E eu, não fora ser já tão tarde, também estive vai não vai para lhe dizer, por entre (outra vez) os beijos de adeus, oxalá encontres o que procuras. Um dia, quem sabe?!

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

iniciação ao suplício

Já estava esquecido do ruído metálico daquela infernal máquina quando a ela voltei. A meio da tarde de uma terça-feira, a uma hora de que já não me lembro e que, bem vistas as coisas, é de tudo o que menos interessa. Ataviado, sedado com um drunfo que meti no bucho 10 minutos antes, tenso como uma corda de harpa, lá estava eu com uns chinelos (modelo de verão) que me entregaram, três números abaixo do que eu calço, estes ainda mais ridículos do que os modelos de inverno.  Entrei, sentei-me, deitei-me e, enquanto me punham em cima do peito (até ao abdómen) uma imensa parafernália de bodegas e fios, já a jovem técnica encarregue do exame, loira de cabelo solto, surpreendentemente simpática e de sorriso aberto, me ia dizendo ao que vinha. Depois, despediu-se num curtíssimo até já e, ainda a porta não teria fechado, já o martelar se iniciava. Sincopado, altíssimo, em total dessintonia com os meus (impossíveis de concluir)  pensamentos. Luz apagada, luz acesa, olhos fechados ou abertos, concentrado ou distraído, nada conseguia aquietar-me. Assim, à medida que passavam os primeiros acordes de martelo em bigorna eu considerava, do escasso menu das distracções, todas as que talvez pudessem valer-me: desfaleço, entro em choque, choro, grito  ou morro, não sei que escolha.  Tudo bem senhor Jota? Pergunta-me a minha executora através do sistema de som daquela coisa. O que quer que lhe diga, é a minha resposta. Ainda assim, aproveitando a deixa, questionei-a de imediato: falta muito para acabar? Falta sim, encoraja-me ela (estupor!), ainda agora começámos. E eu, quase à beira do ataque cardíaco, num esforço patético para me recompor, voltei a tentar pensamentos que me trouxessem de volta um pingo de compostura. Pensei que tinha os carros para aspirar quando voltasse a casa. Localizei mentalmente todos os grãos de areia da praia que devia encontrar durante a idealizada tarefa e, mais ainda, devo tê-los catalogado, um a um, por tamanhos e cores, no interior do saco do lixo. Só já bem mais tarde, nem eu sei determinar quando, é que o efeito do drunfo me começou a amolecer. Primeiro o ritmo cardíaco, depois a rigidez do corpo, o borbulhar dos pensamentos, o volume  do som (qual som? do ruído), até que, finalmente, deve ter começado a fazer efeito e eu entrei em modo de ‘quero-lá-saber’. A partir daí, o martelar de demolição da maquineta, a minha forçada imobilização, a dificuldade em descontrair-me, tudo podia levar mais uma hora ou duas (senão mesmo três ou quatro), que pouco ou nada me importava. No entanto, tal como acontece com certos estados de felicidade que parece que só nos chegam quando já desistimos da sua esperança, eis que se faz ouvir a voz da minha carrasca: pronto sr. Jota, agora é que já terminou. Raios! A ver se me lembro de consultar nas propriedades dos drunfos o tempo que levam a actuar.