Já estava esquecido do ruído metálico daquela
infernal máquina quando a ela voltei. A meio da tarde de uma terça-feira, a uma
hora de que já não me lembro e que, bem vistas as coisas, é de tudo o que menos
interessa. Ataviado, sedado com um drunfo que meti no bucho 10 minutos antes, tenso
como uma corda de harpa, lá estava eu com uns chinelos (modelo de verão) que me
entregaram, três números abaixo do que eu calço, estes ainda mais ridículos do
que os modelos de inverno. Entrei,
sentei-me, deitei-me e, enquanto me punham em cima do peito (até ao abdómen)
uma imensa parafernália de bodegas e fios, já a jovem técnica encarregue do
exame, loira de cabelo solto,
surpreendentemente simpática e de sorriso aberto, me ia dizendo
ao que vinha. Depois, despediu-se num curtíssimo até já e, ainda a porta não
teria fechado, já o martelar se iniciava. Sincopado, altíssimo, em total
dessintonia com os meus (impossíveis de concluir) pensamentos. Luz apagada, luz acesa, olhos
fechados ou abertos, concentrado ou distraído, nada conseguia aquietar-me. Assim,
à medida que passavam os primeiros acordes de martelo em bigorna eu considerava,
do escasso menu das distracções, todas as que talvez pudessem valer-me: desfaleço,
entro em choque, choro, grito ou morro,
não sei que escolha. Tudo bem senhor
Jota? Pergunta-me a minha executora através do sistema de som daquela coisa. O
que quer que lhe diga, é a minha resposta. Ainda assim, aproveitando a deixa,
questionei-a de imediato: falta muito para acabar? Falta sim, encoraja-me ela
(estupor!), ainda agora começámos. E eu, quase à beira do ataque cardíaco, num esforço patético para me recompor, voltei a tentar
pensamentos que me trouxessem de volta um pingo de compostura. Pensei que tinha
os carros para aspirar quando voltasse a casa. Localizei mentalmente todos os
grãos de areia da praia que devia encontrar durante a idealizada tarefa e, mais
ainda, devo tê-los catalogado, um a um, por tamanhos e cores, no interior do
saco do lixo. Só já bem mais tarde, nem eu sei determinar quando, é que o
efeito do drunfo me começou a amolecer. Primeiro o ritmo cardíaco, depois a
rigidez do corpo, o borbulhar dos pensamentos, o volume do som (qual som? do ruído), até que,
finalmente, deve ter começado a fazer efeito e eu entrei em modo de ‘quero-lá-saber’.
A partir daí, o martelar de demolição da maquineta, a minha forçada
imobilização, a dificuldade em descontrair-me, tudo podia levar mais uma hora
ou duas (senão mesmo três ou quatro), que pouco ou nada me importava. No
entanto, tal como acontece com certos estados de felicidade que parece que só
nos chegam quando já desistimos da sua esperança, eis que se faz ouvir a voz da
minha carrasca: pronto sr. Jota, agora é que já terminou. Raios! A ver se me
lembro de consultar nas propriedades dos drunfos o tempo que levam a actuar.