sábado, 31 de outubro de 2015

viver num país riquíssimo

Na sexta-feira, passei distraído pela frente da TV, no preciso momento em que eram transmitidas imagens da posse do novo governo. Assisti assim a alguns breves segundos daquele mise en scéne do costume. Um séquito enorme 
(enormíssimo) 
de gente – umas centenas - que vence acima do que valerá ou produzirá, atarefada nas suas diligências de entrar nos carrinhos conduzidos pelos seus esmerados motoristas, mordomia a que o cargo de governante num país riquíssimo como o nosso lhes dá direito, entre outras, 
muitas outras.

Depois, ainda enojado pelo que presenciei estar ali a acontecer, lá voltei às minhas leituras, nas quais me vi aflito para me concentrar face à manifesta impossibilidade de esquecer 
(ou ignorar)
que SOMOS NÓS OS CONTRIBUINTES QUE ALEGREMENTE FORNECEMOS A MATÉRIA-PRIMA PARA O QUE ALI SE PROCESSA.
Em suma, é profundamente estranho que neste país, este simples acto de assistir a um governo que começa a governar não seja uma coisa bonita de ver.

domingo, 25 de outubro de 2015

10 minutos

É um espaço a céu aberto. Uma escapatória na berma da estrada, frente ao posto de gasolina em que paro e onde apenas dois clientes ao balcão bebem minis e me ignoram. Cada vez que por aqui passo vejo-as sentadas, em cadeiras de campismo que dobram e levam consigo quando algum cliente aparece. Imagino que seja para pôr a roupa que despem, antes do serviço. Isto sou eu a presumir que se despem, claro. No entanto, o que me desperta a atenção é ver o que fazem nas horas livres. Conversam, enviam sms’s, uma faz cruzadex’s. A morena, mais pujante que as outras, é a única que não faz nada. Talvez por ser a que mais clientes atende. Calculo eu. Ouve-se então um ruído de motor e eis que um Audi, a fazer pisca, se aproxima dela. Mal se ergue, apenas se inclina junto à janela do pendura. A troca de palavras é breve, vejo-a pegar a mala, fechar a cadeira e, dirigindo-se ao porta-bagagens, depositá-la no seu interior. Depois, acena às colegas enquanto abre a porta e, fazendo de novo pisca, já o condutor retoma a estrada quando uma Ford Transit, abrandando a marcha uns metros atrás, aponta às duas que permanecem sentadas. Parou junto à loira de saia curta, ainda a enviar sms’s, perna cruzada, e que, sem desviar os olhos das teclas, se levanta para poder ficar à altura do vidro aberto da carrinha. Então, ao mesmo tempo que deixa de se ouvir o motor da carrinha, é agora o seu condutor que abre a porta e sai. Nisto, já ambos tomam a direcção de um carreiro que mal se percebe, um pouco mais à frente, por entre a vegetação cerrada que os cerca. Ela à frente, ainda a dedilhar o telefone, ele uns metros atrás, segue-a de perto depois de se ter oferecido para levar a cadeira. Quando desaparecem, por entre a sombra incerta dos ramos, sou eu que fico a adivinhar o teor da sms recém saída dos seus dedos: vou ter de ir, tenho um cliente, até já, continuamos daqui a 10 minutos

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

um crime de abandono

Os vermes são dois, um a que eu podia muito bem chamar homem, mas para o qual não consigo encontrar denominação que melhor se adeqúe do que seja ‘um monte de merda’; e uma gaja que, designasse-a eu por ‘cabra’,  ficaria o rótulo a anos luz do que a separa das mais abjectas, mais parasitas e mais desumanas criaturas que haveria de ter conhecido em toda a minha vida. Chamo-a, portanto, de ‘larva do esterco’.

Um e outro, fugindo da vida como sempre os vi fazer, acobardados num existir feito das mais fúteis comodidades/prioridades

(dormir até tarde, a decoração da casinha mudada de 15 em 15 dias, as roupinhas novas no roupeiro trocadas à mesma velocidade a que os centros comerciais as mudam nas montras, os bifinhos do lombo como requerem os seus dentes menos capazes, ver todas as séries e os filmes da TV, e todos os demais ocos interesses a que se possam entregar dois monstros a viver um egoísmo elevado à mais cruel e doentia potência),

a que só alguém mentalmente desequilibrado pela insensibilidade e pela indiferença se pudesse entregar, foram parar (há muito anos) ao Canadá, mais propriamente a Toronto. Terra sonhada por ela desde que a apontou como destino no mapa da sua mórbida insanidade, ou seja, desde que a mais estúpida vida que alguém pode ter levado (nunca quis trabalhar, é claro) a fez entusiasta do ‘american way of life’ contando ainda com o impulso dado pelo pavor dos fenómenos sísmicos

(ficou muito traumatizada desde o tremor de terra  em 1969, dizia o imbecil do pau mandado do marido a justificá-la e a protegê-la).

Para trás, entregues ao mais vergonhoso abandono, deixaram os pais. A mãe dele ao cuidado do irmão mais novo, com o qual exacerbaram a sua total rotura

(fruto de recalcadas frustrações e invejas que nunca foram capazes de superar)

como forma de se libertarem das responsabilidades de filhos, ainda que desprezíveis como era o caso. Foi assim que, jamais esquecerei a sua argumentação quando por diversas vezes o  vi ser confrontado com a estranheza de não se dispor a saber da mãe: «para mim a minha mãe já morreu há muito», disse o monstro há quase duas dezenas de anos atrás, bem a sabendo viva e, certamente, coitada, a pedir a deus nas suas orações pelo bem estar desta aberração que o destino lhe deu como filho; Os pais dela, votados ao mais doloroso abandono de idosos a que até hoje me foi dado assistir, vivendo as suas exigentes velhices em insustentáveis e desumanas condições de pobreza, doença, miséria e indiferença, as quais mitigava ela pela via dos telefonemas que lhes fazia, repletos de instruções de quem, mais que tudo - nunca fez por disfarçá-lo -, só queria que eles se mantivessem longe, à distância, sem a incomodar. 

Ao longo dos últimos anos atingiram estes pulhas, nesta conduta, os mais cruéis rasgos de desprezo pelos seus progenitores. Ele não tendo sequer articulado que fosse uma só palavra com aquela que lhe deu vida, atitude que manteve até aos dias de hoje em que, atente-se, ainda desconhece que a mesma faleceu, há uns meses, entregue aos únicos e irrepreensíveis cuidados que o filho mais novo honrou para com ela - o acompanhamento que qualquer mãe desejaria ter tido -, ao arrepio do nojo/ódio que definitivamente consolidou para com a atitude do irmão. Ela, a ‘larva do esterco’, gerindo com tanto desinteresse como oportunismo o escasso acompanhamento que por cá sabia ser caridosamente ministrado aos pais, fosse por amigos, fosse por parentes afastados. E assim, indiferente aos ecos da mais incrédula reprovação que lhe foram chegando ao longo dos anos, com todos lidou da forma como lidam os mais reles canalhas, ou seja, cortando relações com os que a chamavam à razão. Telefonava aos pais em seguida, como se a frieza da sua chamada não lhe doesse a eles tanto ou mais como terá doído a repulsa que lhes demonstrava sentir. Descurando as gravíssimas situações em que nunca lhes prestou nem o auxílio de lhes enviar ajuda económica, quando disso mais careciam;

(durante dezenas de anos partilharam aquelas duas almas UMA SÓ DOSE de almoço – ao custo total de € 2,50, já incluindo sopa e sobremesa - fornecido pela instituição de solidariedade mais próxima, e com preço calculado em função dos seus rendimentos – a soma das suas duas pensões a rondar um total de € 300,00)

O descaro atingiu tais dimensões que, agonizava já o seu pai naquele que viria a ser o seu leito de morte (na sequência de uma queda em casa), quando, passeando ela (eles) num cruzeiro, em digressão pela Europa, uma amiga comum se sentiu obrigada a instá-la a pôr fim aquela crueldade. «E se aproveitasses a escala do cruzeiro num porto aqui mais perto e viesses despedir-te do teu pai que por estes dias não deverá resistir à situação em que já se encontra há umas semanas!». E a miserável veio. Seguramente mais condoída pela vergonha de ter sido assim alertada do que pela vontade de acompanhar o pai, o qual faleceu sem que ela o visse, na mesma noite em que a desumana filha viajava de avião. E a ‘cabra’, sentem-se agora para melhor acreditar no que vão ler, não só não o viu em vida tal como não o viu já morto, pois nem ao velório ou funeral se dignou ir, nem que fosse em representação da idosa mãe que também não esteve presente.  

(E aqui, num pequeno parêntesis, peço-vos desculpa por um ou outro dos excessos linguísticos nestas palavras deixados escapar, mas, se há temas para os quais não conheço palavras leves, que permitam classificar tão torpe conduta, este, do abandono dos pais, levado desta forma ao extremo da escondida barbaridade, é um deles. Um dos que mais  me tiram do sério, mais asco me causam, e cuja nojenta repugnância me impede de buscar delicadeza para o abordar.)

Ainda assim, mesmo que como ser estranho a estas duas repelentes criaturas não me imagine sequer a aceitar deles a generosidade de um copo de água - a menos que bebessem metade, primeiro eles, antes de mim – subsiste aqui um domínio a que não consigo permanecer alheio. O da continuada desumanidade. Sim, leram bem, não fica por aqui a crueldade.

É que, mesmo agora, já só com a mãe dela viva, e depois de ter sabido que a levaram, uns dias depois (no Verão passado, portanto), para junto deles, no Canadá, não obstante a preocupação da octogenária senhora em não querer dar-lhes trabalho, claro, vim a saber que tais monstros se preparam para ‘lhe fazer a vontade’ - isto é, para se verem livres dela.

Imaginem pois - se vos sobrar capacidade para tal -, que por estes dias mais próximos, a vão mandar (literalmente) de volta a Portugal. Já com o bilhete do avião marcado virá a senhora, que tanto os deve estorvar, sozinha, entregue ao cuidado da hospedeira, pois não articula qualquer palavra em inglês, cumprindo o desejo dos bandalhos que decidiram devolvê-la à sua casa.

Assim, nestes últimos dias, tudo tem tentado a sua criminosa filha para consumar o abandono, quer junto de familiares distantes quer de amigos, para que algum se compadeça a dar-lhe assistência, ou até, como sugeriu, ir lá a casa de vez em quando, ver como ela está, onde é bem provável que a venham a encontrar sabe-se lá como, com as suas dificuldades de saúde - surdez, graves problemas de visão e de locomoção - entregue à sua sorte.

No entanto, como era de esperar, e o bom senso assim recomenda, não tendo encontrado nos familiares (primos) ou nos amigos contactados, quem se dispusesse a fazer o que ela e o marido recusaram, estão agora em conversações com uma quase desconhecida senhora da limpeza, para ir lá olhar por ela, de vez em quando - nem que seja só aos sábados de manhã, sugeriu a ‘larva do esterco’ -, ou talvez ao final do dia, só saber se está tudo bem.

Como é possível? Pergunto-me eu sem conseguir calar todo o agastamento que sinto.

É que, há alturas na vida em que me dói acima do suportável o facto de saber que o sofrimento e a morte, que tanto tem castigado e levado imensa gente boa, possua um tão estranho sentido de justiça, permitindo que sobrevivam entre nós, só e apenas para alimentar o seu mais abominável egoísmo, estes desperdícios de células vivas. Estes dois vermes.

 (Entristece-me ainda mais, quase acima do suportável, que alguém que gosta de escrever como eu gosto, sinta a urgente necessidade de o fazer sobre um caso como este. Em parte, na vã esperança de que calá-lo, como cheguei a pensar, não fizesse de mim cúmplice deste delito. Mas, muito especialmente, como grito de alívio e raiva.
A quem teve a pachorra de me ler deixo o lamento pela escolha de tal assunto para tema, o qual embrulho no pedido de que – se forem capazes – me compreendam. Mais ainda, deixo-vos o desejo de uma noite serena, em que não vos atormente a inclassificável crueldade de um crime como este, em que nos últimos dias se têm fechado as minhas insónias, até que pela manhã, quando o sol renasce, a vida volte a ter os perdidos laivos de cor que tamanha atrocidade lhe tirou.)