Os vermes
são dois, um a que eu podia muito bem chamar homem, mas para o qual não consigo
encontrar denominação que melhor se adeqúe do que seja ‘um monte de merda’; e uma gaja que, designasse-a eu por ‘cabra’, ficaria o rótulo a anos luz do que a separa
das mais abjectas, mais parasitas e mais desumanas criaturas que haveria de ter
conhecido em toda a minha vida. Chamo-a, portanto, de ‘larva do esterco’.
Um e outro, fugindo
da vida como sempre os vi fazer, acobardados num existir feito das mais fúteis
comodidades/prioridades
(dormir até
tarde, a decoração da casinha mudada de 15 em 15 dias, as roupinhas novas no
roupeiro trocadas à mesma velocidade a que os centros comerciais as mudam nas
montras, os bifinhos do lombo como requerem os seus dentes menos capazes, ver todas
as séries e os filmes da TV, e todos os demais ocos interesses a que se possam
entregar dois monstros a viver um egoísmo elevado à mais cruel e doentia
potência),
a que só
alguém mentalmente desequilibrado pela insensibilidade e pela indiferença se
pudesse entregar, foram parar (há muito anos) ao Canadá, mais propriamente a
Toronto. Terra sonhada por ela desde que a apontou como destino no mapa da
sua mórbida insanidade, ou seja, desde que a mais estúpida vida que alguém pode
ter levado (nunca quis trabalhar, é claro) a fez entusiasta do ‘american way of
life’ contando ainda com o impulso dado pelo pavor dos fenómenos sísmicos
(ficou
muito traumatizada desde o tremor de terra
em 1969, dizia o imbecil do pau mandado do marido a justificá-la e a
protegê-la).
Para trás, entregues
ao mais vergonhoso abandono, deixaram os pais. A mãe dele ao cuidado do irmão mais novo, com o qual exacerbaram a
sua total rotura
(fruto de
recalcadas frustrações e invejas que nunca foram capazes de superar)
como forma
de se libertarem das responsabilidades de filhos, ainda que desprezíveis como
era o caso. Foi assim que, jamais esquecerei a sua argumentação quando por
diversas vezes o vi ser confrontado com
a estranheza de não se dispor a saber da mãe: «para mim a minha mãe já morreu
há muito», disse o monstro há quase duas dezenas de anos atrás, bem a sabendo
viva e, certamente, coitada, a pedir a deus nas suas orações pelo bem estar
desta aberração que o destino lhe deu como filho; Os pais dela, votados ao mais doloroso abandono de idosos a que até
hoje me foi dado assistir, vivendo as suas exigentes velhices em insustentáveis
e desumanas condições de pobreza, doença, miséria e indiferença, as quais
mitigava ela pela via dos telefonemas que lhes fazia, repletos de instruções de
quem, mais que tudo - nunca fez por disfarçá-lo -, só queria que eles se
mantivessem longe, à distância, sem a incomodar.
Ao longo
dos últimos anos atingiram estes pulhas, nesta conduta, os mais cruéis rasgos
de desprezo pelos seus progenitores. Ele não tendo sequer articulado que fosse
uma só palavra com aquela que lhe deu vida, atitude que manteve até aos dias de
hoje em que, atente-se, ainda desconhece que a mesma faleceu, há uns meses, entregue
aos únicos e irrepreensíveis cuidados que o filho mais novo honrou para com ela
- o acompanhamento que qualquer mãe desejaria ter tido -, ao arrepio do nojo/ódio
que definitivamente consolidou para com a atitude do irmão. Ela, a ‘larva do
esterco’, gerindo com tanto desinteresse como oportunismo o escasso
acompanhamento que por cá sabia ser caridosamente ministrado aos pais, fosse
por amigos, fosse por parentes afastados. E assim, indiferente aos ecos da mais
incrédula reprovação que lhe foram chegando ao longo dos anos, com todos lidou
da forma como lidam os mais reles canalhas, ou seja, cortando relações com os
que a chamavam à razão. Telefonava aos pais em seguida, como se a frieza da sua
chamada não lhe doesse a eles tanto ou mais como terá doído a repulsa que lhes
demonstrava sentir. Descurando as gravíssimas situações em que nunca lhes
prestou nem o auxílio de lhes enviar ajuda económica, quando disso mais
careciam;
(durante
dezenas de anos partilharam aquelas duas almas UMA SÓ DOSE de almoço – ao custo
total de € 2,50, já incluindo sopa e sobremesa - fornecido pela instituição de
solidariedade mais próxima, e com preço calculado em função dos seus
rendimentos – a soma das suas duas pensões a rondar um total de € 300,00)
O descaro
atingiu tais dimensões que, agonizava já o seu pai naquele que viria a ser o
seu leito de morte (na sequência de uma queda em casa), quando, passeando ela
(eles) num cruzeiro, em digressão pela Europa, uma amiga comum se sentiu
obrigada a instá-la a pôr fim aquela crueldade. «E se aproveitasses a escala do
cruzeiro num porto aqui mais perto e viesses despedir-te do teu pai que por
estes dias não deverá resistir à situação em que já se encontra há umas semanas!».
E a miserável veio. Seguramente mais condoída pela vergonha de ter sido assim
alertada do que pela vontade de acompanhar o pai, o qual faleceu sem que ela o
visse, na mesma noite em que a desumana filha viajava de avião. E a ‘cabra’,
sentem-se agora para melhor acreditar no que vão ler, não só não o viu em vida tal como não o viu já morto, pois nem ao velório ou funeral se dignou ir, nem
que fosse em representação da idosa mãe que também não esteve presente.
(E aqui,
num pequeno parêntesis, peço-vos desculpa por um ou outro dos excessos
linguísticos nestas palavras deixados escapar, mas, se há temas para os quais
não conheço palavras leves, que permitam classificar tão torpe conduta, este,
do abandono dos pais, levado desta forma ao extremo da escondida barbaridade, é
um deles. Um dos que mais me tiram do
sério, mais asco me causam, e cuja nojenta repugnância me impede de buscar
delicadeza para o abordar.)
Ainda
assim, mesmo que como ser estranho a estas duas repelentes criaturas não me
imagine sequer a aceitar deles a generosidade de um copo de água - a menos que bebessem
metade, primeiro eles, antes de mim – subsiste aqui um domínio a que não
consigo permanecer alheio. O da continuada desumanidade. Sim, leram bem, não
fica por aqui a crueldade.
É que,
mesmo agora, já só com a mãe dela viva, e depois de ter sabido que a levaram,
uns dias depois (no Verão passado, portanto), para junto deles, no Canadá, não
obstante a preocupação da octogenária senhora em não querer dar-lhes trabalho,
claro, vim a saber que tais monstros se preparam para ‘lhe fazer a vontade’ - isto
é, para se verem livres dela.
Imaginem
pois - se vos sobrar capacidade para tal -, que por estes dias mais próximos, a
vão mandar (literalmente) de volta a Portugal. Já com o bilhete do avião
marcado virá a senhora, que tanto os deve estorvar, sozinha, entregue ao
cuidado da hospedeira, pois não articula qualquer palavra em inglês, cumprindo
o desejo dos bandalhos que decidiram devolvê-la à sua casa.
Assim,
nestes últimos dias, tudo tem tentado a sua criminosa filha para consumar o
abandono, quer junto de familiares distantes quer de amigos, para que algum se
compadeça a dar-lhe assistência, ou até, como sugeriu, ir lá a casa de vez em
quando, ver como ela está, onde é bem provável que a venham a encontrar sabe-se
lá como, com as suas dificuldades de saúde - surdez, graves problemas de visão
e de locomoção - entregue à sua sorte.
No entanto,
como era de esperar, e o bom senso assim recomenda, não tendo encontrado nos familiares
(primos) ou nos amigos contactados, quem se dispusesse a fazer o que ela e o
marido recusaram, estão agora em conversações com uma quase desconhecida senhora
da limpeza, para ir lá olhar por ela, de vez em quando - nem que seja só aos
sábados de manhã, sugeriu a ‘larva do esterco’ -, ou talvez ao final do dia, só
saber se está tudo bem.
Como é
possível? Pergunto-me eu sem conseguir calar todo o agastamento que sinto.
É que, há
alturas na vida em que me dói acima do suportável o facto de saber que o
sofrimento e a morte, que tanto tem castigado e levado imensa gente boa, possua
um tão estranho sentido de justiça, permitindo que sobrevivam entre nós, só e
apenas para alimentar o seu mais abominável egoísmo, estes desperdícios de
células vivas. Estes dois vermes.
(Entristece-me ainda mais, quase acima do
suportável, que alguém que gosta de escrever como eu gosto, sinta a urgente necessidade de o fazer sobre um caso como este. Em parte, na vã esperança de
que calá-lo, como cheguei a pensar, não fizesse de mim cúmplice deste delito.
Mas, muito especialmente, como grito de alívio e raiva.
A quem teve
a pachorra de me ler deixo o lamento pela escolha de tal assunto para tema, o
qual embrulho no pedido de que – se forem capazes – me compreendam. Mais ainda,
deixo-vos o desejo de uma noite serena, em que não vos atormente a inclassificável
crueldade de um crime como este, em que nos últimos dias se têm fechado as
minhas insónias, até que pela manhã, quando o sol renasce, a vida volte a ter
os perdidos laivos de cor que tamanha atrocidade lhe tirou.)