Não estão as pessoas acostumadas a dar.
Uns por estarem habituados a só receber por cobrança, outros por temerem que imerja do
gesto o compromisso conquistado ou o direito assumido. É por isso que, às
espontâneas e gratuitas dádivas que faço, confiro sempre a ilusão de que mais
não são que convites para almoçar, que aceitei realmente reconhecido.
Perceba-se, pois, o que leva a que fujam de dar (como o diabo da cruz), os que,
desconfiados, sempre o fizeram sem disfarçar a cerimónia e os enfeites ou o
fatinho novo e as muitas fotos. É isso
que me faz admirar muito a fé católica da gente pequena que organiza eventos a
que não vou. Que me pede explicações que não dou. E que desprezo por fazerem de
tudo pequeninos logros, enormes embustes, merdosas negociatas. Dar (nem que seja amizade) é nada esperar em troca.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
a eternidade pela frente
Não pára de crescer a minha indiferença por esta via de
pacificação. Contudo, o mais preocupante é isto já não ser coisa nova. E se,
apesar de tudo, ainda há uns meses eram muitos
os impulsos a fazerem com que isso não fosse problema, hoje já nem esse
recurso se vislumbra por entre a inutilidade do que ficou. De bom só mesmo o facto
de ter passado a libertar-me de tudo o que concluí ter a mais. Todos os dias
encontro algo novo que deixou de me fazer falta. E, claro, quando não o deito no
lixo, ofereço a alguém que tenha dos instantes da vida a mesma noção de
eternidade pela frente que eu já tive. Oxalá chegue depressa a vez da
limpeza a este espaço. Enquanto isso, vacilo e insisto ao mesmo tempo.
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
o preço
Esta coisa de aqui deixar meia dúzia de likes, uma foto, duas palavras, uma frase que seja, em momentos que nos interpelam, destinados à eternidade, como os que vivemos a propósito dos recentes acontecimentos em Paris, tem agarrada a ela um lado farsola do qual nos servimos e a que quase todos somos indiferentes. É a componente do alívio de consciência que isso representa. É o que talvez mais se consiga com esses gestos a que gostaríamos de chamar solidariedade - a sensação de dever cumprido. É disso que se trata, uma nova linha de cosmética para a indiferença. Mandar uma boca, um palpite, postar uma foto, um vídeo, e seguir em frente. Assim vamos pagando o preço do nosso bem-estar. Na esperança de que o gasto chegue para as necessidades.
Enquanto isso (e até que o mea culpa faça efeito) eu para me aliviar da minha, escrevo estas linhas em jeito de quem se culpa de a não ter tido.
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
olhem-me para a rapidez do tempo. já viram bem?
Tudo o que o tempo faz de nós
(bom ou mau) sabe muito melhor (ou custa menos) se o acolhermos como um
empréstimo. É verdade que não podemos negociar o spread, mostrar má cara à taxa
de juro ou ameaçar que mudamos de agiota; mas que diabo, quem é que não faz
asneiras e maus negócios?
Daí por diante, por muito que
mudem as variantes, o que nos cumpre pouco mais é do que uma escolha sem saída - ou
pagamos ou devolvemos.
Qualquer hesitação (e o autor destas
linhas teve muitas) será punida à razão de desconfortos vários:
arrependimentos, remorsos, angústias, medo, muito medo. Principalmente ao temer
que tenha sido pouco (quase nenhum) o amor que dei e o bem que fiz (menos ainda)
aos que mais quero.
A velhice é tramada, nunca
devíamos aceitar empréstimos em troca da hipoteca da saúde. São um castigo por saldar e o único benefício que permitem é o descartável prazer que deram. Ao
que parece não é permitida bagagem nas viagens só de ida. Escusam de ter
ideias, abram mas é mão do lastro que vos prende, quanto antes. Se for de amor
(ou de admiração) não deixem nenhum para o fim, por pagar ou devolver. Olhem-me para a
rapidez do tempo. Já viram bem?
sábado, 14 de novembro de 2015
certezas
A amostra não é
suficientemente vasta para aceitar os resultados mas, ainda assim, parecem-me
ser uma esmagadora maioria os que por aqui se empenham mais no insulto do que na
argumentação.
Isto de dar umas valentes bordoadas a eito, sem outro
critério que não seja: toma lá um estalo, venha daí um abraço, requer muita
habilidade de contorcionismo afectivo. Isso e não só, perceber o essencial disto
também é capaz de dar uma ajudinha. E o essencial é a dúvida. Só ela(s) fica(m)
por esclarecer. Certezas é o que por aqui mais de vende. Chego a achar que nunca
ninguém terá percebido que a beleza da vida está na ausência delas.
quarta-feira, 4 de novembro de 2015
castigo adequado ao crime
Não me chega o tempo para tudo o que a necessidade dele (de
ter mais) obriga que faça. Se assim é, pouco mais posso fazer do que aceitar a punição
a que tamanha perda inevitavelmente me condenará. Que mal terei eu feito?
domingo, 1 de novembro de 2015
já cheira!
Antecipando o pesadelo: está quase aí o Natal!*
*(Essa quadra tão desejada pelos apreciadores do aroma das árvores de plástico.)
sábado, 31 de outubro de 2015
viver num país riquíssimo
Na sexta-feira, passei distraído pela frente da TV, no preciso momento em que eram transmitidas imagens da posse do novo governo. Assisti assim a alguns breves segundos daquele mise en scéne do costume. Um séquito enorme
(enormíssimo)
de gente – umas centenas - que vence acima do que valerá ou produzirá, atarefada nas suas diligências de entrar nos carrinhos conduzidos pelos seus esmerados motoristas, mordomia a que o cargo de governante num país riquíssimo como o nosso lhes dá direito, entre outras,
muitas outras.
Depois, ainda enojado pelo que presenciei estar ali a acontecer, lá voltei às minhas leituras, nas quais me vi aflito para me concentrar face à manifesta impossibilidade de esquecer
(ou ignorar)
que SOMOS NÓS OS CONTRIBUINTES QUE ALEGREMENTE FORNECEMOS A MATÉRIA-PRIMA PARA O QUE ALI SE PROCESSA.
Em suma, é profundamente estranho que neste país, este simples acto de assistir a um governo que começa a governar não seja uma coisa bonita de ver.
domingo, 25 de outubro de 2015
10 minutos
É um espaço a céu aberto. Uma escapatória na berma da estrada,
frente ao posto de gasolina em que paro e onde apenas dois clientes ao balcão
bebem minis e me ignoram. Cada vez que por aqui passo vejo-as sentadas, em
cadeiras de campismo que dobram e levam consigo quando algum cliente aparece.
Imagino que seja para pôr a roupa que despem, antes do serviço. Isto sou eu a
presumir que se despem, claro. No entanto, o que me desperta a atenção é ver o
que fazem nas horas livres. Conversam, enviam sms’s, uma faz cruzadex’s. A
morena, mais pujante que as outras, é a única que não faz nada. Talvez por ser
a que mais clientes atende. Calculo eu. Ouve-se então um ruído de motor e eis
que um Audi, a fazer pisca, se aproxima dela. Mal se ergue, apenas se inclina
junto à janela do pendura. A troca de palavras é breve, vejo-a pegar a mala,
fechar a cadeira e, dirigindo-se ao porta-bagagens, depositá-la no seu
interior. Depois, acena às colegas enquanto abre a porta e, fazendo de novo
pisca, já o condutor retoma a estrada quando uma Ford Transit, abrandando a
marcha uns metros atrás, aponta às duas que permanecem sentadas. Parou junto à
loira de saia curta, ainda a enviar sms’s, perna cruzada, e que, sem desviar os
olhos das teclas, se levanta para poder ficar à altura do vidro aberto da
carrinha. Então, ao mesmo tempo que deixa de se ouvir o motor da carrinha, é agora
o seu condutor que abre a porta e sai. Nisto, já ambos tomam a direcção de um
carreiro que mal se percebe, um pouco mais à frente, por entre a vegetação
cerrada que os cerca. Ela à frente, ainda a dedilhar o telefone, ele uns metros
atrás, segue-a de perto depois de se ter oferecido para levar a cadeira. Quando
desaparecem, por entre a sombra incerta dos ramos, sou eu que fico a adivinhar o teor da sms recém saída dos seus dedos: vou ter de ir, tenho um cliente, até já, continuamos daqui
a 10 minutos.
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
um crime de abandono
Os vermes
são dois, um a que eu podia muito bem chamar homem, mas para o qual não consigo
encontrar denominação que melhor se adeqúe do que seja ‘um monte de merda’; e uma gaja que, designasse-a eu por ‘cabra’, ficaria o rótulo a anos luz do que a separa
das mais abjectas, mais parasitas e mais desumanas criaturas que haveria de ter
conhecido em toda a minha vida. Chamo-a, portanto, de ‘larva do esterco’.
Um e outro, fugindo
da vida como sempre os vi fazer, acobardados num existir feito das mais fúteis
comodidades/prioridades
(dormir até
tarde, a decoração da casinha mudada de 15 em 15 dias, as roupinhas novas no
roupeiro trocadas à mesma velocidade a que os centros comerciais as mudam nas
montras, os bifinhos do lombo como requerem os seus dentes menos capazes, ver todas
as séries e os filmes da TV, e todos os demais ocos interesses a que se possam
entregar dois monstros a viver um egoísmo elevado à mais cruel e doentia
potência),
a que só
alguém mentalmente desequilibrado pela insensibilidade e pela indiferença se
pudesse entregar, foram parar (há muito anos) ao Canadá, mais propriamente a
Toronto. Terra sonhada por ela desde que a apontou como destino no mapa da
sua mórbida insanidade, ou seja, desde que a mais estúpida vida que alguém pode
ter levado (nunca quis trabalhar, é claro) a fez entusiasta do ‘american way of
life’ contando ainda com o impulso dado pelo pavor dos fenómenos sísmicos
(ficou
muito traumatizada desde o tremor de terra
em 1969, dizia o imbecil do pau mandado do marido a justificá-la e a
protegê-la).
Para trás, entregues
ao mais vergonhoso abandono, deixaram os pais. A mãe dele ao cuidado do irmão mais novo, com o qual exacerbaram a
sua total rotura
(fruto de recalcadas frustrações e invejas que nunca foram capazes de superar)
como forma
de se libertarem das responsabilidades de filhos, ainda que desprezíveis como
era o caso. Foi assim que, jamais esquecerei a sua argumentação quando por
diversas vezes o vi ser confrontado com
a estranheza de não se dispor a saber da mãe: «para mim a minha mãe já morreu
há muito», disse o monstro há quase duas dezenas de anos atrás, bem a sabendo
viva e, certamente, coitada, a pedir a deus nas suas orações pelo bem estar
desta aberração que o destino lhe deu como filho; Os pais dela, votados ao mais doloroso abandono de idosos a que até
hoje me foi dado assistir, vivendo as suas exigentes velhices em insustentáveis
e desumanas condições de pobreza, doença, miséria e indiferença, as quais
mitigava ela pela via dos telefonemas que lhes fazia, repletos de instruções de
quem, mais que tudo - nunca fez por disfarçá-lo -, só queria que eles se
mantivessem longe, à distância, sem a incomodar.
Ao longo
dos últimos anos atingiram estes pulhas, nesta conduta, os mais cruéis rasgos
de desprezo pelos seus progenitores. Ele não tendo sequer articulado que fosse
uma só palavra com aquela que lhe deu vida, atitude que manteve até aos dias de
hoje em que, atente-se, ainda desconhece que a mesma faleceu, há uns meses, entregue
aos únicos e irrepreensíveis cuidados que o filho mais novo honrou para com ela
- o acompanhamento que qualquer mãe desejaria ter tido -, ao arrepio do nojo/ódio
que definitivamente consolidou para com a atitude do irmão. Ela, a ‘larva do
esterco’, gerindo com tanto desinteresse como oportunismo o escasso
acompanhamento que por cá sabia ser caridosamente ministrado aos pais, fosse
por amigos, fosse por parentes afastados. E assim, indiferente aos ecos da mais
incrédula reprovação que lhe foram chegando ao longo dos anos, com todos lidou
da forma como lidam os mais reles canalhas, ou seja, cortando relações com os
que a chamavam à razão. Telefonava aos pais em seguida, como se a frieza da sua
chamada não lhe doesse a eles tanto ou mais como terá doído a repulsa que lhes
demonstrava sentir. Descurando as gravíssimas situações em que nunca lhes
prestou nem o auxílio de lhes enviar ajuda económica, quando disso mais
careciam;
(durante
dezenas de anos partilharam aquelas duas almas UMA SÓ DOSE de almoço – ao custo
total de € 2,50, já incluindo sopa e sobremesa - fornecido pela instituição de
solidariedade mais próxima, e com preço calculado em função dos seus
rendimentos – a soma das suas duas pensões a rondar um total de € 300,00)
O descaro
atingiu tais dimensões que, agonizava já o seu pai naquele que viria a ser o
seu leito de morte (na sequência de uma queda em casa), quando, passeando ela
(eles) num cruzeiro, em digressão pela Europa, uma amiga comum se sentiu
obrigada a instá-la a pôr fim aquela crueldade. «E se aproveitasses a escala do
cruzeiro num porto aqui mais perto e viesses despedir-te do teu pai que por
estes dias não deverá resistir à situação em que já se encontra há umas semanas!».
E a miserável veio. Seguramente mais condoída pela vergonha de ter sido assim
alertada do que pela vontade de acompanhar o pai, o qual faleceu sem que ela o
visse, na mesma noite em que a desumana filha viajava de avião. E a ‘cabra’,
sentem-se agora para melhor acreditar no que vão ler, não só não o viu em vida tal como não o viu já morto, pois nem ao velório ou funeral se dignou ir, nem
que fosse em representação da idosa mãe que também não esteve presente.
(E aqui,
num pequeno parêntesis, peço-vos desculpa por um ou outro dos excessos
linguísticos nestas palavras deixados escapar, mas, se há temas para os quais
não conheço palavras leves, que permitam classificar tão torpe conduta, este,
do abandono dos pais, levado desta forma ao extremo da escondida barbaridade, é
um deles. Um dos que mais me tiram do
sério, mais asco me causam, e cuja nojenta repugnância me impede de buscar
delicadeza para o abordar.)
Ainda
assim, mesmo que como ser estranho a estas duas repelentes criaturas não me
imagine sequer a aceitar deles a generosidade de um copo de água - a menos que bebessem
metade, primeiro eles, antes de mim – subsiste aqui um domínio a que não
consigo permanecer alheio. O da continuada desumanidade. Sim, leram bem, não
fica por aqui a crueldade.
É que,
mesmo agora, já só com a mãe dela viva, e depois de ter sabido que a levaram,
uns dias depois (no Verão passado, portanto), para junto deles, no Canadá, não
obstante a preocupação da octogenária senhora em não querer dar-lhes trabalho,
claro, vim a saber que tais monstros se preparam para ‘lhe fazer a vontade’ - isto
é, para se verem livres dela.
Imaginem
pois - se vos sobrar capacidade para tal -, que por estes dias mais próximos, a
vão mandar (literalmente) de volta a Portugal. Já com o bilhete do avião
marcado virá a senhora, que tanto os deve estorvar, sozinha, entregue ao
cuidado da hospedeira, pois não articula qualquer palavra em inglês, cumprindo
o desejo dos bandalhos que decidiram devolvê-la à sua casa.
Assim,
nestes últimos dias, tudo tem tentado a sua criminosa filha para consumar o
abandono, quer junto de familiares distantes quer de amigos, para que algum se
compadeça a dar-lhe assistência, ou até, como sugeriu, ir lá a casa de vez em
quando, ver como ela está, onde é bem provável que a venham a encontrar sabe-se
lá como, com as suas dificuldades de saúde - surdez, graves problemas de visão
e de locomoção - entregue à sua sorte.
No entanto,
como era de esperar, e o bom senso assim recomenda, não tendo encontrado nos familiares
(primos) ou nos amigos contactados, quem se dispusesse a fazer o que ela e o
marido recusaram, estão agora em conversações com uma quase desconhecida senhora
da limpeza, para ir lá olhar por ela, de vez em quando - nem que seja só aos
sábados de manhã, sugeriu a ‘larva do esterco’ -, ou talvez ao final do dia, só
saber se está tudo bem.
Como é
possível? Pergunto-me eu sem conseguir calar todo o agastamento que sinto.
É que, há
alturas na vida em que me dói acima do suportável o facto de saber que o
sofrimento e a morte, que tanto tem castigado e levado imensa gente boa, possua
um tão estranho sentido de justiça, permitindo que sobrevivam entre nós, só e
apenas para alimentar o seu mais abominável egoísmo, estes desperdícios de
células vivas. Estes dois vermes.
(Entristece-me ainda mais, quase acima do
suportável, que alguém que gosta de escrever como eu gosto, sinta a urgente necessidade de o fazer sobre um caso como este. Em parte, na vã esperança de
que calá-lo, como cheguei a pensar, não fizesse de mim cúmplice deste delito.
Mas, muito especialmente, como grito de alívio e raiva.
A quem teve
a pachorra de me ler deixo o lamento pela escolha de tal assunto para tema, o
qual embrulho no pedido de que – se forem capazes – me compreendam. Mais ainda,
deixo-vos o desejo de uma noite serena, em que não vos atormente a inclassificável
crueldade de um crime como este, em que nos últimos dias se têm fechado as
minhas insónias, até que pela manhã, quando o sol renasce, a vida volte a ter
os perdidos laivos de cor que tamanha atrocidade lhe tirou.)
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
escusada lucidez
Admitindo que pudesse esse acontecimento
ter-me chegado por acção do vento de um presságio não determinado, na última
sessão a que fui contei à psicóloga, que tinha encontrado no facebook, uma
ex-namorada.
Pediu-me então que lhe falasse do
assunto com maior rigor. Há quanto tempo não nos víamos? Mais de 40 anos. Que significado
tinha tido para mim esse reencontro? Surpresa. Porquê surpresa? Por ela ainda
se lembrar de mim – respondi-lhe eu com a mais pura da minha sinceridade.
Então ela, socorrendo-se da sua angélica
paciência, e em jeito de quem arruma definitivamente o assunto, rematou:
Mas diga-me lá, se uma ex-namorada não
se recordar de si, mesmo que tenha sido há 40 anos, a que género de posteridade
é que espera poder aspirar?
Não lhe dei resposta, é óbvio, limitei-me a considerar a possibilidade, no trajecto de regresso a casa, de este mês não lhe pagar.
Porra, tanta lucidez mata!
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
meia-idade
É patético de ver aquele espectáculo. Cansativo
até. Todos ali predispostos a desvendar a perfeição de que já foram feitos, há
muitos (muitos) anos. Vivendo naquilo meses e meses de exaustiva repetição.
Olha eu, como já fui. Olha eu agora, como sou hoje. Tornam-se, assim, cúmplices
das suas melancolias, repartindo-as uns com os outros, expondo-as como se fosse
vaidade (vaidade de quê?) o que os leva a fazê-lo daquela forma.
- Que bonita rapariga!
- Sou eu.
- Não! Não pode ser. Foste assim?
E ela, que mal sobrevive aquilo, quase em lágrimas,
envergonhada do passo em falso que deu ao mostrar assim ao mundo a sua actual feiura.
Como se fosse uma montra o espaço que os acolhe, ei-los sentados junto ao vidro,
à espera do que não virá. Mostram as belezas que já foram em contraste com os
camafeus (e os canastrões) em que nos tornámos. Meses e meses naquilo. Quem mal
repare é bem capaz de nem perceber porque o fazem, a intenção que os anima, ou,
vá lá saber-se, onde querem chegar e não chegam.
Enfim! Não param de me surpreender as variações sobre o
masoquismo de que são feitas certas vidas, de certas pessoas, cegas à imagem a que o
tempo as transmutou. Ignorando que há coisas (tantas) que é melhor
esquecer que recordar.
Ou, como diz um dos deuses
com os quais partilho estas (e outras) confissões - é a meia-idade. Coitados de nós.
sábado, 8 de agosto de 2015
sofridas e frustradas satisfações
Ela deve ter começado de pequenina a gostar de tintas, telas, tecidos,
texturas. Ao longo da adolescência, mais pela prática ocasional do que por via
de orientada formação, continuou ligada aqueles materiais. Não muito, só mesmo
o indispensável. Comprava-os, experimentava-os, estragava-os. Mais tarde entrou
para o ensino onde terá aperfeiçoado parte do pouco que até ali aprendera. Pelo
meio conheci-lhe alguns propósitos de negócio, todos mal sucedidos diga-se,
como quem tentava fazer disso um modo de vida. Até que, há uns anos, a sua
imprevista saída da cidade a acabou por integrar no meio humilde da província onde
a vim reencontrar. É lá que me apercebo como o seu curriculum cresceu, tal qual
os estados de delírio a que as febres altas (e as frustrações, ao que parece)
nos conduzem. Tornou-se directora disto e daqueloutro, presidenta do que mais possam
imaginar, laureada com prémios concedidos a méritos tão duvidosos como a cegueira
e o bom gosto de quem os atribuiu. Hoje, pouco mais é que a imagem de marca dos desenganos a que a vida
nos conduz quando a levamos fútil e sem outra chama que não seja a ostentação.
Onde quer que a veja é certo que exibirá, atrás de si, a cauda de cometa daquilo
a que pomposamente chama a sua vasta obra. Subprodutos do que se esforça por
plagiar, manipulações contranatura de peças e técnicas que resultam cândidas de
infantilidade, inocentes de habilidade. Radiosa é como a encontro sempre que
acidentalmente nos cruzamos. Trocamos dois beijos, perguntamos se está tudo
bem, uma frase sobre as famílias e, à primeira deixa, eis que já me fala de si,
como quem dá a saber que, mercê do estatuto artístico da talentosa criatura que
tenho na frente, talvez não fosse despropósito solicitar-lhe um autógrafo. Finalmente,
em jeito de despedida, ainda me informa do local, dia e hora, onde irá decorrer
mais uma das suas exposições. E eu, não fora ser já tão tarde, também estive
vai não vai para lhe dizer, por entre (outra vez) os beijos de adeus, oxalá encontres o
que procuras. Um dia, quem sabe?!
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
iniciação ao suplício
Já estava esquecido do ruído metálico daquela
infernal máquina quando a ela voltei. A meio da tarde de uma terça-feira, a uma
hora de que já não me lembro e que, bem vistas as coisas, é de tudo o que menos
interessa. Ataviado, sedado com um drunfo que meti no bucho 10 minutos antes, tenso
como uma corda de harpa, lá estava eu com uns chinelos (modelo de verão) que me
entregaram, três números abaixo do que eu calço, estes ainda mais ridículos do
que os modelos de inverno. Entrei,
sentei-me, deitei-me e, enquanto me punham em cima do peito (até ao abdómen)
uma imensa parafernália de bodegas e fios, já a jovem técnica encarregue do
exame, loira de cabelo solto,
surpreendentemente simpática e de sorriso aberto, me ia dizendo
ao que vinha. Depois, despediu-se num curtíssimo até já e, ainda a porta não
teria fechado, já o martelar se iniciava. Sincopado, altíssimo, em total
dessintonia com os meus (impossíveis de concluir) pensamentos. Luz apagada, luz acesa, olhos
fechados ou abertos, concentrado ou distraído, nada conseguia aquietar-me. Assim,
à medida que passavam os primeiros acordes de martelo em bigorna eu considerava,
do escasso menu das distracções, todas as que talvez pudessem valer-me: desfaleço,
entro em choque, choro, grito ou morro,
não sei que escolha. Tudo bem senhor
Jota? Pergunta-me a minha executora através do sistema de som daquela coisa. O
que quer que lhe diga, é a minha resposta. Ainda assim, aproveitando a deixa,
questionei-a de imediato: falta muito para acabar? Falta sim, encoraja-me ela
(estupor!), ainda agora começámos. E eu, quase à beira do ataque cardíaco, num esforço patético para me recompor, voltei a tentar
pensamentos que me trouxessem de volta um pingo de compostura. Pensei que tinha
os carros para aspirar quando voltasse a casa. Localizei mentalmente todos os
grãos de areia da praia que devia encontrar durante a idealizada tarefa e, mais
ainda, devo tê-los catalogado, um a um, por tamanhos e cores, no interior do
saco do lixo. Só já bem mais tarde, nem eu sei determinar quando, é que o
efeito do drunfo me começou a amolecer. Primeiro o ritmo cardíaco, depois a
rigidez do corpo, o borbulhar dos pensamentos, o volume do som (qual som? do ruído), até que,
finalmente, deve ter começado a fazer efeito e eu entrei em modo de ‘quero-lá-saber’.
A partir daí, o martelar de demolição da maquineta, a minha forçada
imobilização, a dificuldade em descontrair-me, tudo podia levar mais uma hora
ou duas (senão mesmo três ou quatro), que pouco ou nada me importava. No
entanto, tal como acontece com certos estados de felicidade que parece que só
nos chegam quando já desistimos da sua esperança, eis que se faz ouvir a voz da
minha carrasca: pronto sr. Jota, agora é que já terminou. Raios! A ver se me
lembro de consultar nas propriedades dos drunfos o tempo que levam a actuar.
quarta-feira, 29 de julho de 2015
ex-colega
Tropecei nele na praia, hoje. Já não nos víamos há
um ano, talvez mais. Trocadas as primeiras palavras de acolhimento depressa nos
dispusemos a contabilizar o tempo a que nos havíamos livrado da ‘escravatura’
que foi o serviço activo. Então, à vez, cantando o céu alcançado com a
libertação, cada um de nós gritou o seu
alívio por esse apagar de memória que ambos supomos ter feito. Depois, como se
nos custasse a crer que o mundo tenha continuado a rodar sem o nosso precioso
contributo, os dois nos mostrámos descrentes de que os novos (que ocuparam os
nossos lugares) se mostrem capazes (ou até melhores) a fazer o que nós
fazíamos. No fundo somos o único animal que tendo consciência da falta que não
fazem nos comportamos como se fossemos únicos e insubstituíveis. É tão triste
isto. Tão triste que nestas alturas nem devia haver realidade que o prove. Nem
factos a torná-lo impiedoso.
terça-feira, 28 de julho de 2015
dar a volta por cima
É
verdade sim, mal tenho tido tempo para aqui vir. Creio mesmo que mais uma
semana e já nem me lembrava da senha de acesso a esta coisa. Ainda assim, importa que o diga, as razões
que o explicam nem sequer são boas. Embora sejam muitas. Pelo menos isso. A
maior delas é a que menos imediatamente se deixa ver. E ainda bem. Questão de
saúde. (imagino-vos o contentamento de sabê-lo assim). Uma daquelas merdices
sem peso que nos hão-de levar um dia, a todos. Um padecimento de milímetros a
que nem a importância dá valor, pois se não fosse ele seria outro qualquer. Que
se lixe! Afinal, determinar o relevo maior destas coisas (coisas de saúde, ou
da falta dela) raramente importa se o essencial está no impacto que produzem.
No caso a falta que não tenho feito no espaço em branco deste lugar antes vazio.
sábado, 27 de junho de 2015
ajuda
Ligou-me na quarta-feira da
semana passada, estava com um problema. Queria saber se o podia ajudar.
Nunca antes lhe dissera que não,
aquela não ia ser a primeira vez. Ouvi-o. Respondeu-me a uma ou duas questões
que lhe coloquei, por fim lá o ajudei. Expliquei-lhe como devia fazer. Percebi
que ficara satisfeito com a solução que lhe propus. Agradeceu e despedimo-nos.
No dia seguinte, já noite dentro,
voltou a ligar. Estava com algumas dúvidas. Falara com dois entendidos, um
deles a sua actual namorada, nenhum validara a minha solução. Estava de novo
preocupado. Nem um nem outro conheciam a legislação a que eu fizera referência,
trataram-na como um delírio, recomendaram-lhe que tivesse cuidado. Não sei o
que hei-de fazer, rematou.
Era já tarde, ainda assim
pedi-lhe uns minutos, era o tempo de que precisava para lhe enviar por email a
solução que lhe dera no dia anterior. Junto com ela faria seguir o diploma
legal que a fundamentava e permitia, acrescentei.
Ainda assim levei mais tempo,
pelo menos uma hora, tenho a certeza. Precisei de digitalizar quase uma dúzia
de folhas nas quais assinalei com destaque, colorido, ipsis verbis, a minha resolução.
Enviei-lhe então o email com pedido de ‘notificação
de leitura’. Foi assim que vi que o lera uns minutos depois. Não obtive
resposta.
Contudo, no dia seguinte, a meio
da manhã, voltou a ligar-me. Queira agradecer-me o que fizera. Afinal, quis ele
justificar-se, a minha namorada e o professor dela não sabiam que a Lei tinha
sido alterada no ano passado, foi por isso que diziam que estavas enganado. Mais,
acres centou ele, agradeceram que lhes tivesses enviado o preceito legal que
acompanhava o email. E ele, é claro, aproveitava e pedia desculpa. Um dia
destes almoçamos? - perguntou ainda.
Que sim, respondi-lhe eu. A tudo.
Ao mesmo tempo que jurava a mim mesmo, pela minha já de si contingente saúde, que não lhe
desculparia. Nunca. Tão certo como a invenção de todos os compromissos do mundo,
a que recorrerei para não estar disponível no dia do almoço. Melhor ainda, em
todos os dias de todos os almoços.
Ele não sabe, pobre coitado, claro que
não sabe, mas naquele dia a sua consideração (por mim) ultrapassou todos os
limites. Até o da velocidade. Foi uma pena. Talvez um dia comece a aplicar a
penalização por pontos, como as cartas de condução. Até lá, ficamos assim.
Evito-o apenas. E minto-lhe, também.
quinta-feira, 25 de junho de 2015
previdência
Não estou a gostar nada da sua cara, disparou ela
sobre mim enquanto em movimentos mecânicos continuava a ligar-me os fios ao
peito, aos pés, aos pulsos e até à alma também, alguns, não muitos. Compreendo-a,
devolvi-lhe eu. É que tenho andando com uns problemas de saúde, que já vai
sendo pouca. Umas vezes os nervos, outras a colite, a próstata, a bronquite,
essas mazelas assim. Ah, então é dos que vão morrer velhos e saudáveis, teimou ela. Os
casos mais graves que por aqui apanho, e também os que morrem mais novos, são os
que imaginando-se de perfeita saúde não chegam sequer a saber o nome da doença de
que são vítimas.
quarta-feira, 24 de junho de 2015
a herança (dos incapazes)
O que me atrai ao campo é coisa pouca. Bens que a
minha mãe e os meus avós (da parte dela) me deixaram, quase nada de valor mas
muito de importância pelo mundo enorme de generosidade que contêm dentro deles.
Da parte do meu pai (e das suas origens) o legado foi nenhum. Uma casa que,
quando lá passo perto, no alto da estrada, confirmo sempre se ainda não
desmoronou por completo, a qual, fruto da vontade arbitrária e senil de um
primo (um palerma, coitado), apodrece em ruínas, condenando toda a família à
vergonha (e tristeza) de não saberem honrar os seus antepassados. Nem que fosse
assim, mantendo de pé o pouco (que é tanto) que lhes deixaram. Dali a única dignidade
esperada é a derrocada final que, essa sim, possa conferir a todos nós (e somos
já bastantes) a consciência descansada de quem não foi capaz de melhor. Mas
voltemos ao que aqui me traz que, isso sim, possui valor por comparação com
este nojo existencial.
O que me atrai ao campo, dizia, para lá do gosto em
cuidá-lo, bem se vê, é uma consolidada vontade de deixar aos meus netos,
naqueles metros de terra, um pedaço de história que me defina. Só por isso
tenho levado parte da vida, solitário, a cuidar de telhados, paredes e muros, árvores,
algumas das quais plantei, e de pedras que afasto e junto em prol do ingénuo propósito
de, quem sabe, um dia os poder levar a pensar: o nosso avô é que as pôs (e
deixou) aqui.
Tem sido assim que me tenho mantido preso ao
passado que outros me deixaram, por certo com outros intentos, e que me foi outorgado
com a condição de herdeiro.
A herança é uma figura de estilo, sei-o bem, que
nos leva a fazer dela o que a vida (e a recordação) daqueles que estão na
sua raiz nos impõe. Uns cospem-lhes em cima, são-lhes indiferentes, deixando
que se fundam no rótulo que lhes atribuo – desmazelados – a consideração que
lhes têm, outros, fazem dela a estátua erigida a título póstumo.
É por isso que, sendo tão pouco o que faço pela que
me coube, ao olhar em volta e perceber o desleixo e o descuramento a que os
outros destinam as suas, não deixo de sentir que lhes estou grato e os
considero por não terem abandonado ao desprezo o que também antes receberam.
Ainda assim, perverso como é o destino quando lhe
dá para escrever torto o que tanto fazemos questão de manter aprumado, não
deixo de temer, confesso, o que me espera de castigo quando for eu a deixar aos
meus o pouco que lhes guardo.
É que, a avaliar pelo que me mostram na forma como
cuidam o que é já seu, não me sobram muitas dúvidas que o fim da consideração
estará para breve.
Esta acaba por ser, afinal, a razão única porque
espero que com a minha partida, os que deixo e me sucedam vendam (nem que seja
a pataco) o que não saibam ou não queiram cuidar. Prefiro considerar essa possibilidade a
imaginar entregue ao desleixo aquilo que tanto empenho (e sacrifícios) terá
custado a quem até ali o fez chegar.
Por isso, mais do que tudo, o que anseio para os
vindouros é que a vida lhes permita a lucidez de não me castigarem a mim,
depois de morto, como vejo outros castigarem os seus, quase parecendo não
perceber como não casa a bota com a perdigota quando em bicos de pés, a quererem
empoleirar-se nos vários pedestais a que se esforçam por subir, imaginam que
não se note a incapacidade que os tolhe de sequer cuidar do que é seu.
domingo, 21 de junho de 2015
a hóstia
Pode ainda não ser amanhã o dia em que faça o que ando para
fazer há mais de um ano. Digo-o hoje assim, sem constrangimentos, talvez por
saber já que não irei sentir remorsos. Quem anda há tanto tempo a adiar uma
coisa de tão vital importância não sente arrependimento. Só frustração. Talvez
um dia isto me passe. Contudo, sei-o bem, ainda não será amanhã esse dia.
Entretanto, para aproveitar o tempo, talvez vá fazer umas coisas que trago adiadas
desde a adolescência. Uma delas é ver se ainda está comestível a hóstia que uma
vez roubei lá da sacristia. Guardei-a, ainda me lembro, dentro dos Lusíadas,
logo a seguir ao concílio dos deuses, imediatamente antes do Vasco da Gama
receber os mouros e, nunca mais me lembrei de ir ver se ainda está em condições
de me remir de alguns dos pecados que me atormentam. Quem sabe, pode ser que
não se tenha colado às folhas, como elas se colavam ao céu da boca quando as
recebia em comunhão. Na dúvida, o melhor
é manter também esta tarefa em fila de espera. Caramba, nos tempos que correm
uma hóstia não é coisa que se desdenhe. A menos que tenha perdido os poderes
de salvar, ou as vitaminas. Logo vejo.
sexta-feira, 5 de junho de 2015
dois enganos, uma mesma tristeza *
Tenho uma
reconhecida dificuldade no trato com certos ‘senhores doutores’, daqueles que
passam receitas (mas só com certos, felizmente muito poucos, diga-se),
sobretudo quando, por comparação, me apercebo que fui educado a ter pelos cães
mais respeito e consideração que aquela que os vejo ter pelas pessoas.
Eu explico.
Faz agora
um ano acolhi o seu ‘problema’ com o interesse, e a importância, com que acolho
todos (ou quase todos), mais ainda por me ter chegado por parte de um amigo,
daqueles já antigos que trago no aconchego do peito. E, como há quem diga
que os amigos dos meus amigos meus amigos são, lá o recebi como tal. Contudo, há
excepções para este axioma como irão poder ver.
Então (prosseguindo o triste relato), percebendo
como estava na minha mão a faculdade de lhe poder poupar uns milhares de euros (sim,
leram bem, disse milhares), tive naquela ocasião o ‘elevado prazer’ de receber
dezenas de telefonemas seus. Pedidos de esclarecimentos, informações de que
carecia, ajudas indispensáveis, pedidos de intervenção, eu sei lá que mais...
Até que, chamando a mim um trabalho que sabia
medonho de exigente, me dispus, eu mesmo, a fazer o que mais ninguém lhe faria.
E assim, decompondo as horas livres na atenção que o seu caso exigia, consegui
levar a bom porto a tal poupança reavida num pagamento a que estaria condenado
por manifesta incapacidade de resolução de um caso difícil que a vida (e uma
generosa herança) lhe oferecera.
Ora, se até aqui nada de mais vos pode parecer
estranho, o que a mim me tira do sério é que, meia dúzia de meses depois da (re)solução
que lhe ofereci (literalmente), o referido espécime, tendo voltado a estar ao
meu lado (ele e a família), por ocasião da comemorações da ‘passagem de ano’, tenha sido incapaz de sequer as boas noites me dar. Isto, é evidente, sem
descurar que, por mais outras duas ou três vezes, também ao meu lado tivesse
estado sem que fosse capaz de um gesto da mais vulgar simpatia. Já nem digo
telefonar-me, pois admito que depois de tantas chamadas que me fez, quando
precisou, tenha certamente perdido o meu número. Coisa que acontece muito a este
tipo de gente.
O outro ‘senhor doutor’, por sinal com quem tenho
uma relação de vizinhança e proximidade que muito jeito lhe dava, era à data
médico de família dos velhotes cá de casa. E assim, depois de um belo dia me
ter abordado, na sala de espera do seu consultório, logo ali tratou de me
expressar o seu desconforto pela má qualidade do trabalho que lhe vinha a ser
prestado pelo profissional a quem pagava. Ora foi dali que nasceu o meu
compromisso de lhe dar ‘uma-vista-de-olhos’ ao seu caso, o que fiz com tal
disponibilidade, e eficácia (passe a imodéstia), que dali veio também a
resultar um relacionamento de dependência, sazonal, relativamente ao
acompanhamento que passou a solicitar-me.
Foi assim que, durante um ano ou dois, sem qualquer
espécie de contrapartida que dali me tenha vindo (fosse de que género fosse,
esclareça-se), e apenas pela amizade que nos ligava o facto de sermos amigos de
infância, lhe dispensei tal ajuda que, inevitavelmente, o levou a ter para
comigo uma mais curta proximidade nas abordagens de aconselhamento que tornou
frequentes e repetidas.
Ora, foi precisamente daí que veio a resultar
aquele que se tornou o desfecho final desta nossa, eficaz e funcional, relação. Eu passo a contar.
Era domingo e, preparando-me eu para sair de casa,
justamente para ir à farmácia de serviço aviar a medicação que aliviasse o
desconforto de um familiar a padecer daquilo que nos pareciam ser vertigens,
eis que me aparece o meu ‘bom amigo’ ao portão da garagem. Uma pequena folha
numa das mãos e com ela o pedido de que o ajudasse a melhor satisfazer o que um
qualquer serviço público oficialmente lhe requeria. E nisto, logo ali,
apercebendo-me do que se tratava, eu me dispus a sossega-lo: deixar estar que
eu trato-te disto, não precisas de te preocupar.
E assim, sumariamente resolvido que ficou mais um
dos seus variados problemas, pensei eu em fazer-lhe aquilo que nunca antes fizera.
– Já agora, que estás aqui, queria pedir-te um
favor, a F… acordou hoje cheia de tonturas e temos estado até agora sem
perceber se é de vertigens que se trata ou apenas de algum sintoma de origem
cervical.
E é então que o ‘senhor doutor’, acertando em cheio
na minha mais inesperada expectativa, me propõe:
- Ah, está bem, está bem, ela que vá lá amanhã à
tarde, ao consultório, que eu vejo isso.
(Estou a imaginar-vos a sorrir pelo que acabam de
ler, é claro.)
Todavia, vocês jamais poderiam sabê-lo, morreu ali,
naquela frase, aquela que foi a minha vasta ingenuidade (e com ela toda a
disponibilidade) com que sempre lhe acolhera as suas múltiplas necessidades.
De tal sorte que, tenho a certeza, a ‘triste figura’
ainda hoje se deve interrogar sobre que estranho bicho me mordera a ponto de
nunca mais, dali em diante, me ter disposto sequer a ouvi-lo.
Foi até assim que, no dia seguinte, manhã cedo, eu
mesmo lhe liguei, ainda a caminho do emprego:
- Olha, estás bom, era só para te dizer que deixei
na tua caixa do correio o papel que onde me deste, é que afinal eu hoje não vou
ter disponibilidade para te resolver o problema e, se não te importas, não vá
aquilo ser urgente, vais lá tu hoje e tratas do assunto.
Sim, podem dizê-lo, são realmente raros os que
escapam ao ‘carisma’ com que lhes retribuo o bem que me fazem. A maioria, como
se percebe, apenas acaba a lamentá-lo. É quanto baste.
Sempre vivi (e penso continuar a fazê-lo) a vida
como quem percorre uma estrada de expectativas (e de sintonias) extraordinárias.
Contudo, mal seria se ao fim de tantos anos de caminho não tivesse já a intuição de
perceber que, se tal não acontece, é porque, afinal, nos enganámos. Metemos por uma estrada para nenhures.
Talvez, quem sabe, sejam estes os 'enganos' que o tempo faz às esperanças, de que já falavam os versos das redondilhas de Luís Vaz de Camões. Quem sabe?
Talvez, quem sabe, sejam estes os 'enganos' que o tempo faz às esperanças, de que já falavam os
quinta-feira, 4 de junho de 2015
dentes cravados na carne
Fechada a
noite até que o dia volte a ganhar os perdidos veios de cor, por aqui me
entrego à melancolia das palavras através das quais me esqueço do tempo e em
que fico horas. Depois, já bem mais tarde, quando sinto que deixou de me doer a
alma, gosto de deixar alinhavado num pedaço de papel os afazeres que me esperam
daqui as umas horas, poucas, quando acordar. Umas vezes a lista é feita de
compras, café, leite sem lactose, lâminas, flocos de aveia e guardanapos. Outras
vezes, de tarefas por cumprir, pintar os candeeiros do jardim, aspirar os
carros, podar as árvores, arrumar a secretária. Há anos que uso esta estratégia
como receita infalível para a disciplina. E, podem acreditar, nunca falha. Não
há memória de uma destas listas ter sobrevivido mais de 48 horas nos meus
bolsos. E não é pelo peso, juro. É porque o meu respeito por elas as trata como
se fossem um cão. Sempre a morder, sem me dar descanso.
quarta-feira, 3 de junho de 2015
segurem-se que está em marcha o carrossel
Irrita-me (muito mesmo) que as pessoas esperem de mim coisas
bestiais. Principalmente quando não conseguem (ou não querem) dar-se conta da
desilusão que foram. Cheguei a esta idade cheiinho de cicatrizes que me ficaram
de outras amizades fachada e de outros géneros de convivências, simplesmente
utilitárias. Por isso, nos dias de hoje, imitações do genuíno já não tolero nem
as gargalhadas. Tenho-lhes apenas desdém.
terça-feira, 28 de abril de 2015
a pê que os pê
É verdade que levei anos a afinar este tiro. As mais das
vezes, e foram mesmo muitas, errando o alvo. Pensando hoje o que lhes faria
amanhã, quando voltassem, e depois contemporizando. A facilitar-lhes a vida (e
os negócios), qualquer um deles às vezes também designados por outras
expressões menos elegantes, que me abstenho de expor. Foram muitos anos disto.
O martírio a repetir-se e a renascer, uma e outra vez, sempre (sempre), num
permanente martelar de repetição. Como se o sentimento de ter pena me estorvasse
a pontaria. A coisa a acabar interminavelmente da mesma forma: eu à procura de
justificações no meio das nuvens. Onde elas não existem, pois claro!
Finalmente, este ano, sem mais daquelas, dou por mim neste
regozijo, quase palpável, e todos me parecem alvos fáceis. Um após outro, a
todos sirvo o mesmo desplante que me trazem: desculpa lá, este ano não vai dar.
Como diria o senhor meu pai se aqui estivesse (às vezes chego a acreditar que
está): puta que os pariu! *
*(Desculpem-me o vernáculo mas o velho Alípio tinha razão. É
profundamente libertador.)
sábado, 25 de abril de 2015
(in)gratidão
O almoço de hoje, lá na tertúlia das sextas-feiras, decorreu sobre o signo da (in)gratidão. Isto, se levarmos em conta a quadra em que estamos (altura em que ela mais se aproxima e revela), é quase atribuível à ironia, eu sei. Mais ainda pelo facto do mesmo sido patrocinado por quem foi, ou seja, alguém que (eu também sei) dispensaria de bom grado a matéria incómoda do tema. Apesar de tudo correu tão bem que no fim demos apertos de mão, abraços e até houve quem tenha feito elogios. Depois, já a roçar o exausto, inventei uma desculpa e deixei-os ficar, na sala dos cafés e dos digestivos, mais uma hora ou duas, a serem cínicos uns com os outros. Já foram piores os almoços da tertúlia das sextas-feiras, mas continuam maus. Maus e sem vislumbre de esperança no que respeita a melhorias. Para a semana o tema é o reconhecimento e as formas como ele se manifesta. Espero que não vos seja difícil perceber o alcance da indirecta. Logo se vê!
quarta-feira, 22 de abril de 2015
fundo falso - as coisas de que o passado (não) foi feito.
O vínculo afectivo que se criou entre os dois foi
tudo menos esperado. Deve tê-los apanhado de surpresa. Uma espécie de desacerto
de enredos. Ainda assim ali ficaram horas a fio. Recuperando recordações como
se as suas vidas, até ali, tivessem sido o que não foram - um sossego. Uma
noite cálida de Verão. Daquelas sem lua, em que a escuridão e a temperatura nos
embalam a capacidade de sentir o passar do tempo. Um e outro, a questionar
desconhecimentos. Pedaços das suas vidas que não viveram. Os dois, na
expectativa de que fosse mais do que curiosidade aquilo que os levava a vasculhar
os sobejos da memória. Mas não era. Tratou-se apenas de um passado de que nem
um nem outro fizeram parte. É a vida. Olhá-lo assim, agora, a esta distância, é
como buscar firmeza num fundo falso.
quarta-feira, 8 de abril de 2015
não sei explicar o que me prende
É um prazer que me dá. Um gosto que tenho. Um
deleite antigo. Escrevo aqui, ali, acolá. Vulgaridades. Pedaços de vida.
Relatos de dor, até, às vezes. O que lhes faço, onde os largo, pouco importa.
Se preciso for (e muitas vezes é) volto-lhes depois. Emenda, precisão ou remendo.
O que calhar e me parecer preciso. Até disso é feito o dilatar do gozo tirado aquilo
que mais me agrada, logo a seguir à leitura.
sexta-feira, 3 de abril de 2015
íntimos males
Encontrei-o no acaso
inesperado do passeio matinal que dedico às manhãs de sábado. Isto é, ele a
meio da sua caminhada diária, eu com destino à papelaria onde compro os jornais
e as revistas que me hão-de de preencher os momentos de lazer do fim de semana.
É mentira, eu sei, mas gosto sempre de acrescentar engano à ilusão de que tenho
momentos desses. Adiante. Saudações e cordialidades depois (daquelas de quem já
não se vi-a há muito), e já ele me falava de si. Sobretudo das doenças. Aquelas
do costume, a que a vida (ou a idade) nos condena com a fidelidade do cão que segue
o dono. Enumerou-as todas. Com pormenores que pareciam castigos, seguidos de detalhes que lhes aliviavam o sofrimento.
Tudo relatado com o mesmo colorido com que as tratou por namoradas. Até que, com
a promessa de um dia destes havermos de almoçar, cada um retomou o seu desígnio.
Ele ainda mais lesto, certamente animado pela pausa. Eu a vê-lo afastar-se, e a
invejar-lhe a intimidade com que exibe os achaques. A mesma que me leva a
tratar com reserva as maleitas que a mim me tolhem e me inibo de expor. Como se
fossem prostitutas pouco asseadas.
quarta-feira, 1 de abril de 2015
balanço
Um ano depois, em jeito de balanço, lá me ocorre perguntar:
- Então, que tal, como vão as coisas?
E eis que, sem faltar à realidade que a resposta exige, me devolvem:
- Não me diga nada... É mesmo verdade, o inferno existe.
- Então, que tal, como vão as coisas?
E eis que, sem faltar à realidade que a resposta exige, me devolvem:
- Não me diga nada... É mesmo verdade, o inferno existe.
sábado, 28 de março de 2015
eles matam-se(-nos) a todos!
E eis que um garoto,
de quase 28 anos - Andreas Guenter
Lubitz – vítima de uma depressão profunda, arrasta consigo mais 149 almas para
o mais triste e patético (e inesperado) dos fins a que pode entregar-se um adulto ainda
em construção.
E afinal, porque o terá feito assim, acompanhado por
tantos inocentes?
Só encontro como
resposta uma fria incógnita onde cabem todas as explicações. Talvez, quem sabe,
lhe tenha parecido menos doloroso fazê-lo assim.
Incorporando no alívio para o seu ‘sofrimento’, perpetrado numa decisão tomada antes
(muito antes) da entrada na cabine daquele avião, a companhia de toda aquela
pobre gente.
É assustador. Não só imaginarmo-nos à mercê de
tais insanidades, assim travestidas de gente sã e responsável, como ainda
sabermos que, seguramente (e sublinho o seguramente) todos nós privamos, no
nosso dia a dia, com outros Andreas
Guenter Lubitz.
Eu mesmo, assim de repente, me lembro de alguns com
quem já lidei na minha humilde vida profissional. Um, andou 12 (contados)
meses com a mesma roupa e os mesmos ténis. Juro pela minha querida saudinha! Um
fato de treino (sim é de um serviço do Estado que falamos, e sim, faz-se por lá exclusivamente
atendimento público) que permitia as imensas combinações que vocês já estão a
imaginar: com calças e blusão e, com calças sem blusão, em tshirt, portanto,
ora a branca com dizeres nas costas, ora a cinzenta com publicidade no peito.
Era uma figura bisonha, perturbado a um nível que reclamava intervenção urgente
(internamento, até talvez, que um dia o miúdo descompensa-se e vai ser o bom e
o bonito.) Levava esta 'ave' os santos dias a fadar o futuro numa folha Excel,
onde alimentava um gráfico de ambições (imagine-se): Dezº de 2016 - comprar uma
aparelhagem Bang & Olufsen - 2.000,00 €; Agosto de 2015 – comprar um conjunto de sofás Chateau
d’Ax - 4.500,00 €; Março de 2017 – comprar uma mota Honda Gold Wing 29.000,00€.
Há uns anos, pela via do crédito
bancário, adquiriu um apartamento. Não decorreram muitos meses até que a
administração de condomínio do imóvel viesse contactar o serviço. Digamos que
veio certificar-se se a insanidade do petiz, com que se estavam a ver
confrontados, era real ou imaginária. E era real sim, dolorosamente real. Tão
real como as inúmeras histórias (do mais incrível grotesco) que relataram, do
alucinado comportamento do rapaz para com os restantes moradores seus
vizinhos.
Bom, depois desse veio um
outro. Juro que gostava de vos dizer que era melhor. Gostava mesmo. Mas, não
era. A sua bipolaridade entregava-o de manhã bem disposto e comunicativo, levava-o
ao almoço já meio sisudo e fechado em si, e fazia-o retornar à tarde, mudo,
mal-disposto, prestes a explodir de ira, raiva,
cólera, fúria ou outra qualquer dessas danações que a mente humana, quando se inclina para o disfuncional, melhor
sabe exibir.
Um dia, a má sorte ou o avesso destino levou-me a visitar um blog
que o infeliz me confessou sustentar na net (tão mau como este meu, sim é
verdade). É um espaço negro. Onde escreve a negro. Negros textos decalcados de
uma negra infância a que faltaram preciosos e indispensáveis ingredientes. Mete
medo ler aquilo, ainda que as palavras empregues expliquem tudo o que estas
linhas não conseguem. E o pior é que temo mais pelas duas almas que educa do
que por ele mesmo (dois filhos ainda crianças, um deles, talvez já com 5 ou 6
anos, que evidencia visíveis problemas de interação com o meio ambiente,
constantemente transportado ao colo dos pais, por manifesta impossibilidade de
o fazerem direccionar no sentido desejado. Nunca
o vi comunicar com aqueles a quem o tentaram apresentar, expor ou mostrar.)
Tudo isto para vos dizer
quanto urge dotar os serviços de saúde de mecanismos de alarme, onde o disparo
de casos como estes possam ser diagnosticados e, devidamente
acompanhados. É que, de contrário, eles matam-se(-nos) a todos…
quinta-feira, 26 de março de 2015
(con)juntos
Aos poucochinhos, como fazem as galinhas com o milho,
que as ajuda a construir a sua reputação, também faço eu com os hipócritas, deixando
que se juntem todos num mesmo conjunto, onde reúno os melhores expoentes da mentalidade
cretina. Torna-se assim mais fácil perceber que a atracção que os uniu é tanta
como as semelhanças entre eles. Sempre gostei muito de imbecis, não escondo.
sexta-feira, 20 de março de 2015
a imensa consideração que lhes tenho – isto é, nenhuma
Numa postura cujas razões é prudente não
demandar descobri que hoje em dia, já livre do aperto da ‘gravata’, passo por
eles e incho os ombros. Olho-os de igual para igual, como se fosse isso coisa
que antes me estava vedada. E estava, claro que estava. Mas agora, talvez num
excesso de pose cuja vanglória desconhecia ter, cruzo-me com eles e, fazendo-os
sentir quanto os considero, pisco-lhes o olho. Outras vezes não. Olho-os apenas
de frente, com o mesmo desdém com que antes me trataram. Sabem qual é? Aquele que
eles, lá do alto da íngreme
escadaria da sua majestade, dedicam aos mendigos a quem dão esmola em
dias certos. Uns merdas, como diria o senhor meu progenitor que sempre foi
muito certeiro em tiro de precisão.
quarta-feira, 18 de março de 2015
(des)crenças irracionais
Não sei se ela esperava de
mim outra coisa que não fosse o que lhe dei. É mentira, claro, mas aqui dá gosto deixar a dúvida. A razão principal, quando não a única, deve-se á sua
conduta. Certamente com origem na banha da cobra do reiki, em que se diz
especialista, ou numa outra qualquer das crenças irracionais a que chama
terapias, que tem concentradas na ponta dos dedos, mais que no cérebro, que
esse parece trazê-lo vazio. Usando da natureza interesseira que lhe
desconhecia, tal como as outras, pediu-me ajuda. Uma vez. Duas. Três. Concedida
como a dei, com o timbre de competência com que gosto de fazer o que melhor
sei, só me restava esperar que o reconhecimento de um simples ‘obrigado’ viesse
ao meu encontro. Esperei. Esperei. Esperei. Não veio. Levou um ano inteiro sem
vir. Até que, cumprido o ciclo, com o mesmo sentido de oportunidade com que o
fizera das outras vezes, me telefonou. Com pressa. Sem tempo. Repartida entre a
viagem de regresso a casa e mais uma das suas sessões de terapia, com que tanto
cura um cancro como uma unha de pé encravada.
-
Precisava que me ajudasses outra vez, este ano - ouvi-a dizer.
Então,
eu, que antes era estúpido e agora já sou apenas presunçoso, puxando para mim o
mesmo descaro que a vejo usar, disse-lhe:
- Eh
pá, que pena, este ano não vou poder…
E,
tentando por em prática a minha limitada sabedoria, que jamais soube lidar com
estes improvisos, acrescentei:
-
Estou de partida para o Tibete onde vou estar 3 meses, a fazer uma formação em
copos de água, perdão, em homeopatia. Desculpa lá.
É
por isso, e pelo tom desiludido e desgostoso com que de imediato se despediu, que
eu digo que não sei se ela esperava de mim outra coisa que não fosse o
que lhe dei. Desconfio que não.
segunda-feira, 16 de março de 2015
vontade de atrasar os ponteiros ou parar o pêndulo
Já passava das duas da manhã quando parei de
escrever. Apaguei as luzes e fui espreitar a rua. As noites de domingo são
estranhamente sossegadas. O último som que retenho foi do autoclismo do andar
de cima. Depois, o correr de água no bidé. Rápido, quase urgente até. Devia
passar pouco da meia-noite. Não muito, uns minutos apenas. Num encadeado de
rituais de que não abrem mão (até nas horas a que corre água no bidé do andar de
cima), a rotina dos domingos é de uma sincronia assustadora. Quase pendular. Depois, a
afastar a recordação de que só vai voltar a ser domingo daqui a sete dias, fui à casa de
banho, fiz xixi, lavei as mãos e os dentes, enfiei-me na cama e não demorei a
adormecer.
domingo, 15 de março de 2015
bolachas baunilha
Trago comigo desde os idos anos da
adolescência uma mão cheia de sabores
que, experimentados em diversas circunstâncias da vida, se devem ter alojado na
minha memória duma forma assustadoramente eficaz. Um deles (há muitos outros)
resultou de uma espécie de castigo que o senhor meu pai ao tempo me impôs.
Tratou-se da punição que me foi aplicada por ter reprovado
(por faltas e afins) num dos primeiros anos do liceu. Passei os dois meses de supostas
férias a fazer aquilo que hoje é bem capaz de ser classificado como um crime
social. Ou seja, a trabalhar (pro bono) num supermercado local, de que os meus
progenitores eram associados.
Acho que a expectativa dele, ao fazer aquilo, era
que eu tivesse vergonha. No entanto, está mesmo a ver-se, não tive. Não tive e
ainda hoje me parece que a experiência, mesmo arrumada lá no passado distante
onde ficou, me foi extremamente útil para a vida.
Primeiro, porque foi daquelas penas que não doeu
sequer. Depois, porque com ela aprendi tudo o que não sabia (e que era possível
aprender num lugar daqueles) do sistema monetário ao sistema métrico, ou das
relações humanas à mais habilidosa manipulação comercial. Digamos que fui um
excelente aprendiz do papel que incarnei - o Manelinho merceeiro dos livros da
Mafalda.
- Pode levar
à confiança Dª Francisca que os bolos são todos de hoje – aprendi eu a
dizer com aquele ar da mais inquestionável convicção, incluindo nas palavras ‘todos de hoje’ a dúzia e meia de bolos
que tinham sobrado de ontem.
Ora, acontece pois (como já percebam), que ainda
hoje tenho para com o aludido correctivo, e o contexto em que foi aplicado, uma
postura de agradecido reconhecimento que me é (e será sempre) impossível
iludir.
No entanto, tal como dizia no início, o que aqui me
traz é a panóplia de sabores (e aromas também) que desse tempo retive. A
maioria, é óbvio, provêm da minha confessa gulodice, a qual, fruto da liberdade
de que gozava no espaço comercial em questão, depressa tratei de exacerbar até
ao limite do suportável pelo meu pobre fígado.
É então daí que trago guardado, no meu imaginário
gustativo, um lugar especial ao sabor das bolachas de baunilha, as quais terão sido
o primeiro alvo dos meus ataques de gula. Devo ter comido umas boas caixas (e
quilos) delas, que devorava ao longo dos dias, acompanhadas das, então em voga,
bojudas garrafinhas de Laranjina C. Virei, tenho a certeza, umas valentes
litradas delas.
Claro que, pelo meio deste festim gastronómico, e
para desfastio, eram incluídas generosas, e bem fornecidas, sandes de paio, de
torresmos e de queijos vários, servidas ao sabor do meu crescimento e do
constante apetite que o acompanhava.
Também assim, não há como ocultá-lo, os intervalos
dos meus dias, nos espaços de tempo não dedicados às razias gastronómicas da mastigação,
eram frequentemente complementados com um selectivo raid gourmet aos pacotes de sugus, às caixas de pastilhas
e aos sacos de caramelos.
A minha voracidade era tal que, em casa, às
refeições, até a minha querida progenitora passou a sentir-se apreensiva com a inexplicável
falta de apetite que eu revelava. Nem sei mesmo se não terá chegado a pensar
que pudesse aquele súbito fastio estar associado à eficácia do castigo (pobre
Emília que não merecias um safado de um filho destes).
E no entanto, fosse naquela altura possível
monitorizar o disparo que terá sofrido o dito estabelecimento, no que ao consumo
daqueles específicos bens alimentares diz respeito, e ter-se-ia revelado melhor
negócio a avisada dispensa dos meus serviços, mesmo pro bono, do que suportar o encargo da especialização em sabores e
aromas que por lá fiz, naqueles dois meses.
É que, convenhamos, foi tal a intensidade, que
ainda agora, só de reviver aquele tempo através desta descrição, voltei a
sentir o paladar e acho até que a arrotar às bolachas de baunilha que já não como
há anos. Pudera (esgar de enjoo da abundância).
sábado, 14 de março de 2015
o autoritário exercício do poder
Trânsito proibido
E eis que aquilo que ontem era intolerável hoje não passa de deslembrado olvido. Tal como se tornou punível o que antes era exigido que se apurasse.
Bom, depois disto não sei o que
seja melhor. Se cegar de vez ou conseguir evitar estes seres divinos que não
podem ser olhados nos olhos.
Os funcionários das finanças possuem perfis de acesso às plataformas informáticas. Qualquer consulta que promovam, como é bom (e fácil) de ver, deixa um rasto sempre possível de apurar. Daqui resulta que, qualquer espécie de consulta, feita com propósitos de devassa, é e será sempre fácil de localizar, permitindo, quando caso disso, imputar aos seus mentores a inerentes responsabilidades disciplinares. Nada de mais até aqui.
Contudo, extrair relação de todos quantos fizeram consultas APENAS A DETERMINADOS CONTRIBUINTES, e movendo-lhes perseguição considerá-los (em pacote) objecto de acção disciplinar, é conduta que já cai fora do propósito normativo. Sobretudo quando os responsáveis pela própria plataforma, confundindo autoridade com autoritarismo, a optimizam por forma a poder monitorizar 'no momento' quem ouse usá-la para consultas à protegida elite. Salta aos olhos que tal intuito, aqui ou no Turquemenistão, não possui outro escopo que não seja INTIMIDAR aqueles a quem se pede 'olhos atentos'. Avisá-los de que AQUI NÃO! ESTA LISTA SÃO CARTAS FORA DO BARALHO. E no entanto, a coisa é tão mais grave quanto é sabido que integram a dita lista muitas e exaltadas almas que, imagine-se, NEM SABIAM QUE TINHAM DE PAGAR. Isto, por muito que custe, é uma evidência a que não se pode fugir.
Em suma: ou mudamos de rumo ou um dia destes ainda nos privatizam a democracia.
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