É
um daqueles como há poucos, capaz de nos mudar o conceito de paz mais depressa
do que a chegada ao fim da viagem no 109 para a Falagueira. O silêncio roça o
absoluto, aqui e ali emoldurado pela sinfonia dos passarinhos, ao fim da tarde,
no frenesim do regresso aos ninhos. Da varanda para a serra testemunha-se a soberba
vista do encontro do céu com o dorso verde das escarpas. Finalmente, como se não
fosse já bastante, junta-se a todo este encanto feito de coisas simples, o genuíno
aroma do campo. Em suma: a beleza é tanta e tal que usufrui-la tão pouco, como
me está a acontecer nos últimos tempos, é o sinal evidente do revés existencial
em que tenho vivido. Ainda hoje me custa a crer.
terça-feira, 30 de setembro de 2014
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
que gente esta!
Já não me lembro a que propósito, talvez por ser domingo, ontem depois
do jantar tivemos visitas. Daquelas que fazendo-se convidadas quando nos entram
em casa avisam logo - não demoramos, é rápido. Não foi. E, se não tardou a
explicação sobre ao que vinham, demorou (e
não foi pouco) a apetecer-lhes ir embora. Devemos ter conceitos diferentes de
rapidez, é o que é. Adiante. Pelo meio, das quase duas horas que levaram a ser
rápidos, proporcionaram-nos momentos de apatetada exaustão. E, só mesmo por
temermos que nos pudessem estar a espiar pelo canto olho, evitámos bocejar
enquanto suspendiam a conversa (atente-se no desplante), distraídos com um
daqueles parolos programas da nossa dominical TV nocturna. Bem mais tarde, cruzava eu
as pernas pela vigésima terceira vez, pouco depois de se auto-elogiarem pela
educação que deram à filha, fizeram (finalmente) o anúncio da vontade de nos
deixar. Senti então na boca o sabor da salada de rúcula e beterraba do almoço e
uma lágrima de sangue a querer escorrer-me pela face. Salivando acima do
habitual para uma noite de domingo consegui, a tempo, engolir um (o paladar) e
evitar a outra (o pingo de hemoglobina).
Porém, o que já não consegui foi evitar o relato que ainda nos fizeram (em tom
de queixume), daquilo que os irrita sobremaneira
quando aproveitam uma horita ao almoço para ir, numa corrida, às compras ao
hipermercado. São os velhotes, aclarou ela num sorriso que apelava à nossa concordância.
São os velhotes. Sabem o que é uma pessoa chegar à caixa para pagar e ter na
frente só velhotes, com três ou quatro coisas para pagar? Umas peúgas bordeaux.
Um pacote de chá de camomila. Um frasco de limpa-vidros e uma lata de pimentão. Estão a ver que gente
esta!? Parece que até fazem com intenção. Escolher aquelas horas para ir para ali estorvar.
Sinceramente! E, dito isto, não sei se por terem lido nos nossos olhos mortos
(perdidos no tapete da sala) o esgar da repulsa,
ou por terem percebido a intensidade do arrepio que nos subiu a espinha. Lá os
vimos então levantar e, pedindo desculpa, culpando o fugaz passar do momento,
prometerem voltar outro dia, com mais tempo. (Novo arrepio agora seguido de vertigem.) Até que, já na rua, o carro a arrancar,
num aceno que saiu preso pelo meu mais apurado lado anti-social, prometi-me não voltar a abrir-lhes a porta. A partir de
hoje, às noites de domingo, estores fechados, cortinas corridas, luzes apagadas,
silêncio de sepulcro. Não estamos. Se por pouca sorte vierem num outro dia,
juro, enxoto-os. Como faço com os cães sarnosos, as cobras e os vendedores de fé
religiosa.
domingo, 28 de setembro de 2014
sábado, 27 de setembro de 2014
porquê?
À pergunta: - Porquê 'jota eme pê' e não o nome como deve ser?, não achando melhor esclarecimento dei-lhe este: - Porque não
sofrendo da insuportável sede do exibicionismo, nestas coisas, infalivelmente, encubro sempre uma parte de mim.
sexta-feira, 26 de setembro de 2014
é negociando tempo que a vida se torna no que é
Falámos de tanta, tanta coisa. Eu sei lá! Creio que começámos
pelo tempo. Isso mesmo, o tempo. Ouvi-a falar dele como se ao descrever o seu
tivesse já vivido o meu. Depois, falei eu. Parece-me que foi assim. Isto é,
tenho quase a certeza que foi assim. Os assuntos sucediam-se inesgotáveis. E
falei-lhe de mim, do leite sem lactose, das sementes de chia e das bagas
Godji que como ao pequeno-almoço. (Para quê?) Das viagens que tenho
feito. Dos natais em família. Dos novos amigos. Aí achei-a saudosa. Em
busca de uma recordação perdida. Também as tenho, sei como são. Deu-me a ideia que esperava memórias dos que
já partiram. Os meus e os dela. Ainda assim continuámos. Perguntei-lhe para
desanuviar: mais ninharias interessam-te? Ela sorriu e eu sorri também.
Falou-me então de sorte, servindo-se da que diz ter sido a minha. Dos netos que
adoro e que ela não pode vir a ter.(Oxalá tenha conseguido esconder a minha
tristeza.) Falou-me dos amigos de infância. Comuns alguns. Até os que foram
ficando pelas sombras do passado. De facto, porque
não dizê-lo, estranhei, não sabia que tínhamos tantos em comum. Depois falámos
de seguros. De negócios. De sucesso e de ambições. De casas e móveis. Eu sei
lá! Eu sei lá! Lembro-me de lhe ter dito do gosto que tenho pela bricolage. Pelas pequenas obras
domésticas. A torneira que pinga. Substituir o candeeiro. Pintar os muros. O
telheiro novo. Ela disse-me que não era muito hábil de mãos. Desajeitada até.
Porém, com um certo cinismo (ou provocação, quem sabe?) sublinhou que a sua
eficiência na área em que se especializara ultrapassava todas as demais.
(Nada que eu não desconfiasse já, diga-se.) Por momentos falámos então de
comidas. Eu de leitão, ela de bifes mal passados. Eu de bacalhau, ela de
presunto. Ambos de queijos. De alheiras também. Depois de fruta. Mais eu que
ela, cuja preferência ficou pelos bivalves. Então, ainda nos rimos quando lhe
fiz saber do meu deficit de açúcar. Dos doces que não dispenso. Das iguarias
a que não resisto. Até que, sem o esperar, pediu que lhe falasse dos meus
segredos nunca revelados. E assim fiz, enquanto ela me ouvia atenta. Como se os
quisesse identificar um a um. Não eram muitos. Foi-lhe fácil fixá-los, tenho a
certeza. Enquanto isso, começava a parecer-me impossível determinar se ela
gostava (ou não) da pele que vestia. Fiquei com a ideia que sim. Estou a
maçar-te- quis saber? Que não, respondi eu, incapaz de dizer o que sentia se
ela perguntasse. Falámos então de saúde. Eu da minha. Ela não, que a não tem,
nem dela precisa, já que goza de outros privilégios, como justificou logo a
seguir. Nesse momento, à medida que lhe fui percebendo a hesitação, achei que
ainda nada tinha decidido sobre o que fazer de mim. E eu, aproveitei o momento
para lhe mostrar como estava disposto a aceitar sem arguir o destino que me
reservava. Assim visse ela nisso uma forma de negociarmos. Deve ter resultado,
eu acho. Ou, pelo menos, terei acrescentado algum peso às dúvidas que a senti
ter. Isto, claro está, no meu
ingénuo pressuposto de que as teve realmente. Foi assim, sem mais, que
concluímos o diálogo. Eu mostrando-me disposto a aceitar a sua decisão, ela
finalmente compreensiva, a sugerir-me um adiamento na sua deliberação. Voltamos
a falar daqui a mais uns meses, disse em jeito de despedida. Ela melhor que
ninguém sabia quantos, é evidente. Deixa-me ficar sozinha, pediu num tom de voz
que ainda não lhe tinha ouvido. A mim pouco mais me restou do que aceitar sem
colocar questões. O resultado do negócio só o saberei depois, quando ela apurar
contas e me cobrar o preço a
pagar por tal sorte.
quinta-feira, 25 de setembro de 2014
aquilo que verdadeiramente importa
E a cada livro que me dava (deu-me muitos) juntava a mesma recomendação:
não exibas todas as tuas leituras, deixa que se conheçam apenas as que não
revelam aquilo que se passa dentro de ti.
Não é por mal, acrescentava, mas
porque algumas pessoas ainda pensam que são os nossos prazeres que deixam rasto e que expõem a
nossa nudez.
Mas, pronto, já faleceu o aqui
revelado conselheiro – meu ex-professor – e talvez um dia eu desrespeite a sua
recomendação e me disponha a destapar o
que se esconde nestas entrelinhas.
quarta-feira, 24 de setembro de 2014
fazer o caminho da ingratidão ao contrário
A ingratidão,
a despeito da minha natureza, continua a ser-me generosa. Quando não me aponta o
caminho das pedras na direcção inversa da desgraça, acrescenta luz à luz e
mostra-me o pior da melhor gente, com o seu mau hálito e emproada presunção.
terça-feira, 23 de setembro de 2014
morrem pela boca ressentindo fundo aqueles a quem foi indiferente o que por eles fizeste
Já ando há dias (muitos) a
ganhar coragem. Um bocadinho de cada vez. Como quem bebe um Porto vintage, a
deixá-lo tanto tempo na boca quanto esteve em garrafa. Umas nozes a acompanhar,
só para quebrar o estalo no palato. E, a cada degustação, a cada inclinar de copo,
uma nova esperança de aromas, um renovado alento de força. Depois, sem um nada de peso que o justifique, num
voo descendente de ousadia, o medo de volta. Um pavor que invade, e (não
adianta) é de cobardia que falamos. Um dia chegará, tenho a certeza, a estaleca
que agora me falha. Regressarei então ao ponto de onde nunca parti. Até lá, até
que consiga abordar esse tema, resta-me o suavizante de saber que se adensa sem
parar a contaminação do que tanto orgulho me deu ter deixado em estado puro.
A eles cheguei a pensar, um dia, quem sabe
quando, responder com o Shakespeare do 'Mercador de Veneza': «E se nos
ofenderem, não havemos de nos vingar?»
Contudo, pensando bem, talvez não seja necessário se é de justiça e não de vingança que se trata. E a essa, punição nenhuma, por
melhor que seja, supera o castigo que é não se poder ignorar a realidade.
segunda-feira, 22 de setembro de 2014
anjos
São seres
humanos como nós que lá do alto das nuvens (mesmo das mais negras) continuam a
abraçar-nos – ou a secar-nos as lágrimas - contribuindo para nos fazer
acreditar que lhes devemos tudo; da maior das concedidas ambições ao mais fundo
medo aquietado; do alvoroço da mais doce alegria ao alívio da mais intensa das dores.
Tudo (seja lá isso o que for).
(Que coisa! Devo
ter dormido anos a fio!? É que, apesar de bem acordado como estou agora, continua
a chegar-me o sonho de que te vou voltar a abraçar, daqui a pouco, uma vez
mais, a desejar-te outro feliz aniversário.)
sábado, 20 de setembro de 2014
pobre homem
Hoje (para o que havia de me dar),
andei aqui a reler esta bodega. Dei-lhe, talvez, vinte minutos de atenção. Não
mais que isso. O que, mesmo parecendo pouco, chegou e sobrou para concluir que
se algum incauto alguma vez se dispuser ao mesmo, depressa irá perceber que ainda
não está totalmente extinto o ‘homo frivolus’ da Idade Média. Pobre homem.
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
a sua grandeza é também a sua maior fragilidade
O único símbolo de
superioridade que conheço é a generosidade. Tudo o resto ou é complexo
ou cagança.
quinta-feira, 18 de setembro de 2014
tudo ou o resto?
Sob a forma acanhada da dúvida a
questão foi posta. Seguiu-se então a ela a necessidade de esclarecer. É
verdade, faço-o aqui e em mais sítios. Espalho-me, digamos assim, duma forma
que até pode entender-se literal. O único local onde não o faço é no livro do meu neto, por ultimar antes do fim do mês. Aí, que é onde devia, está quieto! Tem levado
o seu tempo a empreitada (mais do que seria suposto). Portanto, agora que fica esclarecida a
incerteza, espero que já possam ter para vocês o mesmo que eu tenho para mim - que por
muito que o faça não aprendo. Continuo, como há cinquenta e tal anos atrás, no grau zero da escrita. Tenho apenas o resto, falta-me tudo.
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
gostos
Um estudo que tem vindo a ser
aprofundado por investigadores
da Universidade de Cambridge revela que os
"Gostos" feitos no Facebook são uma fonte de revelações acerca das
mais diversas preferências dos seus autores.
Assim, com um rigor que medeia entre os
(impressionantes) 70 % e os 90 %, os algoritmos que vertem desta investigação
conseguem disponibilizar parâmetros que vão desde a orientação sexual até à
preferência política de cada um dos ‘gostadores’.
Até aqui nada de mais, já que ao
movermo-nos naquele meio facilmente se infere dessa aparente possibilidade,
levando em conta o rasto deixado por cada dos nossos ‘gostos’.
Todavia, acrescentam os
investigadores, da mesma forma se conseguem apurar muitos outros aspectos que
traçam a silhueta de quem gosta. Um deles (e este sim é o que mais tende a
preocupar as doutas ignorâncias que fazem daquele ambiente o seu habitat
natural) é o que permite aos estudiosos determinar, a partir dos nossos gostos,
o nosso nível de inteligência.
Ó miséria! E só agora, que já
descobriram a ‘besta’ que eu sou, é que me avisam de uma coisa destas. Louvado
seja.
terça-feira, 16 de setembro de 2014
fuga de talentos
Ouvi dizer que (também politicamente) tem havido no nosso país uma generalizada fuga de talentos.
Bom, não é que eu não tivesse já notado reparando na qualidade (e nos dons) dos
políticos que por cá ficaram na AR (uns certamente esquecidos, outros ainda não
totalmente investigados). Contudo, também me consta que há alguns desses fugidios e habilidosos estadistas já dispostos ao regresso. Será que estamos perante o
fenómeno das cartas devolvidas ao remetente? Coisa que acontece muito quando
entre nós é fácil a vida para os
fala-barato e, lá pelas Europas, o embuste acaba a tornar-se mais difícil.
domingo, 14 de setembro de 2014
o estudo do comportamento dos oportunistas
Mais do que seria suposto tenho
levado um tempo inesperado a sair do ‘retrato’ que algumas pessoas fizeram de
mim. O que me tem valido, entre outras formas de descarada e proporcional
demonstração de falta de vergonha, é que no extremo destas ocorrências costumam
estar somente oportunistas a quem me é indiferente que percebam que estou a
usar para com eles da mesma hipocrisia.
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
como se o querer bastasse
De há uns tempos para cá tenho andado a ler com alguma
continuidade uns quantos autores anónimos. Quer dizer, anónimos não,
desconhecidos, ignorados até. Faço-o, como sempre fiz, pelo prazer que me dá a
sua escrita, independentemente do reconhecimento que tenham. Esse, em regra,
nada mais faz do que promovê-los, pouco se importando com a qualidade que não
seja a do papel onde os edita quando a isso se dispõe. Contudo, dê eu as voltas
que der às suas produções, em todas encontro vestígios de dilatada ambição por
virem a notabilizar-se como escritores de renome. É uma fatalidade. Uns
agarrados à bóia da matriz intelectual, de que se acham modelos únicos, outros
convictos que só a falta de poder económico os separa do pedestal do destaque. Todos eles padecem da mesma sofreguidão mediática.
Ora,
é daqui que extraio a minha firme convicção de que já são poucos os que usam a escrita
por puro deleite. Usam-na antes para expor os seus fantasmas. Como ponto de
partida para uma corrida cujo fôlego acham ter de sobra. Ignorando, todos eles,
que a escrita que vinga, aquela que se eterniza, é a que sai natural das mãos
que lhe dão voz. Ou, como diz o António (Lobo Antunes, claro), o mais difícil na
escrita é fazer simples e bom. É que, aqui, mais do que em qualquer outra arte, para os
ambiciosos (e para os que sofrem de cegas auto-estimas) querer não é poder.
segunda-feira, 1 de setembro de 2014
a sina
Por mais incerto que se apresente o navegar com
destino ao futuro não há como ignorar
que, fantástico, absolutamente fantástico mesmo, seria ele se não tivesse
passado por este miserável presente.
E digo-o, assim,
de chofre, a seco, mesmo correndo o risco de estar sozinho neste enunciado, pois
sei que o mesmo é avesso à ideia da maioria dos mortais que achando que o
futuro lhes trará coisas melhores, nem se apercebem que ele só as tira, nunca,
nunca as traz. É uma sina que nos persegue esta.
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