Perguntam-me, por vezes, o que é
feito do G…, da N… ou do F…. Que não sei é a resposta que invariavelmente dou.
Não os perdi mas também não os trago comigo. Um pouco como se os tivesse
esquecido algures, num desvão da vida a que só o acaso me fará voltar um
dia, quem sabe? Então, mesmo sem que me peçam, eu lá acabo por explicar. Há
um lote de pessoas, e aqui lote é palavra que mente já que são apenas três ou
quatro, que dizendo-se meus amigos há muito me habituaram a olhá-los com aquela quase indiferença com que se olham os imperativos a que por obrigação
(ou por elegância, pouco importa) não se pode escapar. Depois de anos a fio em
que me procuraram no local onde sempre souberam poder encontrar-me, aquilo que
ficou não foi mais que isso mesmo. Ser procurado por eles. Então, lá chegados,
tudo o que tinham para me dizer (leia-se, fazer) era o relato, consubstanciado de amor-próprio, das suas
vidas, dos seus feitos e glórias (nunca das suas misérias). Uma hora, duas ou
três, em que jamais coube tempo para de mim saberem além daquilo que o meu
olhar lhes disse. E, mesmo isso, ofereci-lhes eu sem encargos e sem que alguma
vez o tenham perguntado ou lhes interessasse saber. Claro que não. Fazem-no
assim há anos. Postados no palco das suas vidas, usando-me como incondicional espectador.
Depois, bom, depois partem, sabendo (eles e eu) que hão-de de voltar de novo,
não importa quando, para nova exibição. É por isso que, sem nunca
ter conseguido explicar a mim próprio o que estive ali a fazer, ainda hoje me pergunto:
que nome dar a esta gente? Amigos? Amigos
não. Chamar-lhes assim, parece-me óbvio, ofendia os que realmente o são. Os
que, apesar de tudo, ainda são capazes de me acompanhar o cicatrizar das
varizes, o crescer do cabelo ou o cavar das rugas, tanto faz. Amigos é que não.
sábado, 27 de dezembro de 2014
quarta-feira, 24 de dezembro de 2014
coração de cera
É Natal. Mesmo que o não
fosse esta é uma altura do ano que faz de mim piegas. Como também Outubro e as
suas chovidas noites. Não raras vezes dou por mim, a meio de uma notícia na TV,
em plenos diálogos com os que amo (e o retribuem), por cima da prosa dos livros
de cabeceira, e eis que os olhos rasos de lágrimas. Então, dou ao esforço de as suster a prioridade do meu engolir. Uma ou outra imitação de tosse (ou catarro, nem sei) a subir, ou a descer, tanto faz. Um discreto esfregar
de olhos como quem os liberta do que neles entrou e ali não pertence. Enfim,
são inúmeros os truques de me socorro para disfarçar o que não sei se disfarço.
Depois, então, lá fico uns minutos a aquietar-me, de volta ao gelo emotivo
que acredito ser a linha de água do meu mediano sentir.
Ou seja, melhor dizendo o
que ficou por ser dito, à medida que me aproximo dos 60 estou (literalmente) a
tornar-me um coração de cera. Nada a fazer.
segunda-feira, 22 de dezembro de 2014
aos meus netos com amor
E
porque não cabe em mim mais amor do que o tenho pelos meus, têm os últimos
dias, no tempo que neles reservo a este respirar que é a escrita, decorrido à
volta do esquiço a que deverá obedecer o tomo que quero deixar ao meu segundo
neto.
Assim,
a escassos dois dias de finalmente entregar a produzida obra ao mais velho (isto
da obra é pretensão de mau vaidoso, não liguem), busco encontrar no plano do próximo
o espaço em que despeje o que por ele tenho vindo a colectar.
Enfim,
se mesmo não o sabendo fazer é tão difícil aquietar um avô empenhado em deixar equitativamente
repartidos os seus fracos dotes, não sei
como seria caso soubesse realmente escrever.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2014
jantar(es)
Nesta
altura do ano chegam-me sempre convites para eventos a que não encontro razão
para ir. É verdade que são todos para comer. Sim é verdade. Ementas de luxo que
só por si deviam já justificar a maçada. Maminha, coxinha, cupim, picanha,
alcatra, costela de boi. Pelo meio, batata frita, rodelas de abacaxi, banana flambada,
feijão preto. Quase no fim, buffet de sobremesas, doces, frutas e queijos. Cafés e digestivos a terminar.
É o que quiseres, whisky, conhaque, outras bebidas, todas elas generosas. Todas
elas à discrição. Tenho a certeza que
vais gostar. E eu, não tão certo disso, a perguntar-me que espécie de favor
precisam. Que assédios me esperam. Gostas de um charuto, no fim? Um destes dias
havemos de ir à Bobadela. Ou ao Cais do Sodré, que é mais perto. Conheço uns
bares que vais adorar. Mulheres vorazes de prazer, sabes? Agora por isso, a ver
se não me esqueço, tenho lá para te trazer uma caneta que vais gostar. Num
estojo vermelho, lindo. Com um aparo que me disseram ser de ouro, já viste bem?
Pensei logo em ti quando me a ofereceram. Um dias destes trago-a. Ah, e também
trago uma peçazita para a tua mulher. De cristal. Da Boémia. Comprei no duty free de Los Angeles. É aqui que eu
lhes digo que não posso ir. Que tenho compromissos inadiáveis. O gato doente. O
cão em agonia. Os netos na hora de sair das AECs (Actividades de Enriquecimento
Curricular, para os leigos). Ou, quando já nada resulta. Que não gosto
daqueles sítios. Que só costumo comer em tascas. Tabernas escuras onde a
liberdade de dar um bom arroto, a chouriço assado, no fim, já depois dos figos
e das nozes e antes dos cafés, seja igual à certeza de que foi para só para
comer que lá fui. Não havia outras razões, por baixo da toalha de mesa, de
plástico, manhosa. Daquelas onde podemos pingar o vinho que quisermos que nunca
deixa nódoas. E por falar em nódoas, há alturas do ano em que as do atrevimento
são as que me vejo mais aflito para limpar.
sábado, 13 de dezembro de 2014
a culpa é da realidade
Desta janela aberta onde
me debruço a espreitar o horizonte e a apreciar a paisagem das almas alheias
que por aqui passam, tenho visto algumas sobre as quais me enganei quando um dia
lhes dei aquilo que aqui (e agora) lhes retiro. O pior é que, de janela aberta,
já se sabe, um espirro ou dois e aí está a minha rinite de volta. Nada me tem
tanta fidelidade como esta puta desta doença (risquei o puta, espero que tenham reparado.
Foi um engano vernacular, queria ter dito teimosa). E é assim, pingo no nariz, vista a chorar, o
peito cheio de gatos, essas maçadas, que procuro (sem encontrar) a diferença
entre amigo e oportunista, generosidade e expediente, lealdade e interesse. E
pronto, já vi passar bodes expiatórios que cheguem, já tenho a culpa mais
aliviada. Da rinite, bem se vê.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2014
culpas que não se enterram
Primeiro, agachada no chão,
ajeita a terra em volta com a vassoura de nylon, em aconchegos de cobertor.
Depois, muda a água da jarra mais murcha que as
flores de lótus que trouxera do quintal, no mês passado. Agora, já passa a
lápide a pano, aqui e li molhado com borrifos de detergente. Por fim, com um
pincel, aviva o relevo dos anjos, por baixo do nome. Afasta-se então, dois
passos atrás, a contemplar o trabalho feito. Ainda faltam três quartos de hora
para o próximo autocarro. Olha em redor a fazer tempo. E comparações. Há gente
muito desmazelada, conclui, extraindo ao desleixo das outras campas a
condenação de que se acha liberta. A
censura que lhe alivie o
sentimento de culpa. Contudo, talvez porque não o queira recordar,
comporta-se como se tivesse esquecido que enquanto a mãe foi viva nunca lhe deu
a atenção que agora destina ao jazigo. Teve razões para isso. É o indulto com
que protege a consciência. Escondeu-se dela durante anos. Declinava com educação
a cortesia dos convites para almoços. E, quando não inventava desculpas,
servia-se dos amuos com que se mostrava ofendida das coisas que ela lhe dizia. Conseguiu, quase sempre assim, evitar
expor-lhe à vista a existência infeliz que levava, à qual, diga-se, também não deram grande ajuda os mal sucedidos
casamentos que ficaram pelo caminho. Afinal, quem sabe, talvez temesse apenas
que ela tivesse razão. Agora, já a
vassoura e o pincel também passados a água e detergente, enquanto tudo é arrumado
no saco do Lidl, um último aflorar de dedos sobre a pedra fria da campa. Já só
faltam vinte minutos para a carreira. Não
se pode distrair. Ainda está longe do portão. Quando se desse conta estava na
hora. A mãe também teve muita culpa, ensaia pelo caminho, em jeito de
justificação, a voltar-se para trás, num último olhar, já distante, a conferir se
tudo no sítio. Ela gostava muito do Maciel, recorda. Nunca se conformou com o seu
primeiro divórcio. Depois, aos outros, foi o ignorar que se sabe. O pedir a
Deus que não fossem todos ainda piores. E no entanto foram. Pontual o autocarro,
pensou ela ao vê-lo fazer a curva, pouco antes de se imobilizar na paragem. No mês passado atrasou-se. Já por
isso, desta vez deixou o pão encomendado. No entanto, com sorte, talvez ainda
apanhe o talho aberto e ainda compre a dobrada para o almoço de amanhã. Há
tantos dias que me anda a apetecer dobrada. Já na estrada, num olhar sobre os muros
altos do cemitério, veio-lhe de novo à memória o desleixo de algumas das campas.
Há realmente gente muito desmazelada. Alguns até (e também) com os mortos.
Louvado seja.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2014
estupor(es)
Volvidos
os quatro dias em que tive os fedelhos à minha guarda, o mais velho (6 anos de
gente), incomodado com umas inexpressivas dores de barriga, lá foi ao pediatra.
No
consultório – eu, ele e o pai – o seu diálogo com o médico retira-nos de cena e
dá-lhes a eles o palco.
Assim,
numa linguagem própria de quem já ‘apanhou’ mais dores de barriga pela frente
do que eu terei apanhado pingos de chuva, o doutor lá foi arrancando as
indicações que precisava:
- Onde
dói? Quando é que dói? Quando passa?
Como é que passa? – entre outras.
Então,
questionado sobre a ocasião em que terão começado as dores, o petiz lá explicou
que já duravam há quatro dias, desde que
os pais o haviam deixado, com o irmão, em casa dos avós (a minha, claro) e tinham
ido ‘dar uma volta’, aproveitando o feriado para recarregar baterias.
Aqui
chegados, já o clínico dava por
findo o exame de apalpação e todos os demais procedimentos a que recorrera como
forma de despiste do que seria o seu diagnóstico, pergunta-lhe ainda:
- Olha
lá ó João, e porque achas tu que tens tido estas dores de barriga?
Ao
que, ali mesmo e de imediato, todos nós ficámos a saber a real razão de ser da
maleita.
-
Acho que é porque nestes quatro dias, em casa dos meus avós, só tenho comido
porcarias. (sic)
E
foi assim que, humilhado pelo seu próprio neto e ridicularizado pelo terapeuta
(e pelo palerma do pai), o avô saiu dali a perguntar-se:
(Mas,
por que raio é que eu ainda aqui venho aturar estes três estupores?)
Finalmente,
esclarecido com evidência, como foi, o enigma das dores de barriga, ali explicadas à criança como ‘dores
normais quando se está a crescer’ acabou o doutor a recomendar-me (entre
dentes) que naquelas ocasiões usasse a ‘técnica do smartie’ (isto é, o vulgo placebo), que administrado com
o ritual apropriado (e a confiança inerente) se revelará um ‘medicamento’ 100% eficaz
em tais ‘mazelas’.
Claro
que hoje, dois dias decorridos sobre este episódio, ao entrar-me em casa onde
vinha passar umas horas (lanchar e jantar) enquanto os pais ultimavam as
compras de Natal ainda por fazer, a primeira coisa que tive o cuidado de dizer
ao catraio foi que tivesse cuidado para não comer as tais porcarias que lhe
faziam dores de barriga.
Então,
teve o ‘artista’ a especial elegância de me esclarecer em jeito de reparação do
mal:
-
Sabes avô, o que o médico disse foi que eu posso comer coisas que não sejam saudáveis
(panquecas, bolachas de Natal, sumos de fruta, caramelos, essas coisas assim)
pois as minhas dores de barriga são 'por estar a crescer'.
Enfim! Estou
a ficar velho, é o que é.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2014
pior que não saber é julgar que se sabe
Há
erros que não existem, mudam de nome. Tornam-se equívocos ao darmos por eles. Desaparecem como se de cegueira se tratasse.
Hoje, ainda uns lapsos. Amanhã, uns quiproquós sem importância. Para a semana,
tenho a certeza, recatados apontamentos de escrita
criativa.
Nada a fazer, a escrita funciona como uma lente que apenas apura os
contornos. O resto, está nas dextras mãos que ao escolher as palavras a marcam de enfeites. Quando marcam.
terça-feira, 9 de dezembro de 2014
por acaso, por artes do destino
Tão
bonita a renda do naperon. A minha mãe a fazê-la com impiedosa precisão. Levou
anos naquilo. Um milímetro ou dois por dia. Anos a fio (literalmente).
E
afinal,
dás tão pouco valor a estas coisas que até me
faz confusão. Já te ocorreu que qualquer pessoa dotada de bom gosto e alguns
(ainda que poucos) valores básicos percebe a fortuna que aqui está?
Tão
poucas as iniciais ‘RM’ para tanto que me dizem. E eu de olhos semifechados,
perdidos algures entre um risco e dois pontinhos que me fizeram companhia. Meia
hora (talvez mais) a tentar ouvir o som dos pensamentos que aquele ruído impedia
que chegasse até mim.
E
afinal,
tivesse
voz o sofrimento e aquele seria o seu som.
Tão
escassa a vontade de me dar quando o que sobra é medo.
E
afinal,
à
medida que a escuridão dilui, a certeza de que nem as mãos adiante do
pensamento serão capazes de me proteger de todas as inesperadas desgraças.
Tão
curioso o que já me fizeram sentir pessoas por cuja vida passei e de quem um
dia me afastei. Como quem se perde numa estrada sem destino. Muitas delas a vê-las ao longe, sem perceber se é saudade o
nome certo desse querer saber o que delas é feito, ou, se ao contrário, não é
maior o desejo de fugir de tão negro horizonte.
E
afinal,
olhando
bem, perante tão triste espectáculo, a resposta a chegar – era anseio. Uma
vontade imperiosa de as apagar da memória que alguma vez tenham ocupado.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2014
no que a net é fértil
Se
há coisa de que a net é fértil é de logro. Embuste, trapaça, ilusão ou faz de
conta. A cada pedra levantada corresponde um caso ou dois. Imagens maquilhadas
por uma respeitabilidade que não se possui, perfis assentes em alicerces
inexistentes, pessoas de bem que o não são, falsos deuses e deusas, ignorância
oculta atrás de simulados saberes. Enfim, um nunca mais acabar de manhas de que
se servem todos os ‘falsificadores de honestidade’ deste tempo.
Perante
tal paisagem a coisa que mais me surpreende ainda é a facilidade com que aqui
se muda de cara. Como se pudesse alguém esquecer hoje ‘a-merda-de-pessoa’ que
fora até ontem e, assim, do nada,
bastasse aparecer agora, vestido/a de boas intenções para que os tomem pelo
que nunca foram ou virão a ser - gente fiável.
Contudo,
se a cada pedra corresponde um caso ou dois, outros calhaus há que albergam dezenas
deles. Talvez, digo eu, sejam estes os mais fáceis de identificar, pela
quantidade dos seus ardis, pelo que se lhes conhece da vida e se percebe que com ela não confere.
Há
muitos até, que incapazes de alguma vez terem
sido bons para si, ou para os seus, um belo dia aqui aparecem a querer
sê-lo para os outros. Acrescentando engano à mentira.
Enfim,
a realidade é desconfortável à vista e sobre ela se intersectam muitas histórias,
assuntos e até relações sem uma coisa, ou outra (isto é, sem história nem assunto).
Daqui resulta que a minha compreensão dessa gente dependa, fundamentalmente, da
proximidade que estabelecemos. Ou não (felizmente).
a natureza da escrita
A vantagem da escrita (entre outras) é que consegue trazer-me delicadamente de volta
ao trilho, cada vez que saio dele. Ou, quando as leituras são excessivamente inquietantes e perturbadoras. Tanto faz.
domingo, 30 de novembro de 2014
vida comum
É domingo, a
desculpa da falta de tempo não se aplica. Um dia inteiro refugiado nas leituras só podia acabar assim, com o castigo divino vingado na punição da montagem dos ornamentos natalícios. Toma!
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
quanto menos pêlo tem o cão mais as pulgas o atacam
A
realidade é desconfortável à vista e sobre ela se intersectam muitas histórias,
assuntos e até relações sem uma coisa (história), ou outra (assunto). Daqui
resulta que a minha compreensão dessa gente dependa, fundamentalmente, da
proximidade que estabelecemos. Ou não.
quinta-feira, 27 de novembro de 2014
presságio
Hoje,
ao almoço, não percebi como aconteceu, pus uma nódoa nas calças. Mesmo sendo de pudim encarei
aquilo como uma premonição. As nódoas (todas elas) sempre foram um ponto de partida para a
escrita. Nada a fazer. É só esperar.
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
somos (quase) todos peixes num imenso oceano
O cardume é pequeno não por
ataque dos predadores mas por serem uns
cobardolas os poucos membros que o compõem.
A maioria , alforrecas travestidas de peixes de meia água, não passam de
fracas espécies receosas de dar cor ou nome aquilo que lhes corre nas veias e
que não é mais do que uma massa gelatinosa, umas quantas células urticantes e
água, muita água. Sempre dispostas a aplaudir as intervenções pimbas, a que não
faltam e às quais não poupam os seus likes, no entanto tolhem a mão e a
presença no que seja mostrar raça ou opinião, concordância ou acordo, e mais não se lhes conhece que vulgar
oportunismo. Uma chamada deles é sempre (sempre,
sempre) sinal que precisam de qualquer coisa. É exactamente por isso que, aos meus, faço
questão de não deixar uma herança dessas. Ou ‘carne’ ou ‘peixe’, uma amiba é
que não.
sábado, 22 de novembro de 2014
o espelho do nosso tempo
Bom, acho que passada aquela moda de
enfiar a cabeça num balde cheio de gelo chegámos a outra tão asinina
como ela. A do vídeo difundido no FB, para agradecer a amizade de alguém. Ainda
só vi uns vinte ou trinta e foi quanto bastou para me despertar uma imensa inveja. É sempre
nestas ocasiões que ela me assalta assim, intensa de cobiça. Mais ainda por ver
como são tão inspiradores aqueles momentos. Todos tão espontâneos, tão
diferentes e originais. Entretanto, já estou a providenciar um vídeo desses,
para os meus ricos pais, a agradecer-lhes a vida que me deram no vetusto ano de
1955. E, já que estou com isto, tratando-se de agradecer e pagar favores, será
que a Autoridade Tributária aceita uns elogios destes, assim para inglês ver, como
forma de pagar o IUC? Dava um jeito do
caraças!
Bom, e agora vou ali ao espelho da
casa de banho dizer ao gajo que lá aparece reflectido quanto gosto dele, apesar
da sua feiura que dá dó.
sexta-feira, 21 de novembro de 2014
perpétua surpresa
Só para avisar que amanhã vai chover. E, é claro, o facto de irem abrir as comportas do céu pode piorar ou melhorar as coisas, não se sabe. O estado do tempo é como a vida, uma perpétua surpresa.
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
pensão fidelis (1)
É lá que passa os dias. Entre a porta e a cama de metal,
desfeita, onde apenas um edredon, sujo, sem capa, sobre um lençol amachucado, sebento,
tatuado pelo corpos que o usam. A filha distante, fugida há muito daquele
sofrimento, indiferente aquele desacerto. A neta raramente a vê, como é próprio
de quem também assim cresceu. Laços sabe fazê-los como ninguém, com a mesma
facilidade com que os desfaz, dias depois, às vezes, já tem acontecido, uma semana, ou um mês, pouco
importa quando. O tempo que o engano leva a revelar-se é a medida certa. Aos
que chama amigos traça o contorno, anda em redor, mede as posses, esmola e
acosta-se até que dê. Por vezes nem lhes cobra. Pagam em géneros. Às amigas faz
o mesmo, mostra-se simpática, paciente para os filhos, até que lhes leva os
namorados, lhes suga os maridos. Batem à porta. Outra marcação. Desliga o
tablet. Abre-a em seguida quase ao mesmo
tempo que acende o rádio.
- Olá, como estás, há muito que não aparecias.
Estamos a meio do mês, são mais esparsas as solicitações.
É nesta altura que os artifícios ganham cor. No perfil do facebook actualiza o
curriculum, muda as fotos, culpa a Segurança Social, cola-se a outros
desamparos na esperança que a confundam. Ou que dela tenham pena, tanto faz. Pelo meio, já é costume, mais um ou outro imprevidente.
Tudo serve. Uma sopa, um almoço, lanchamos se quiseres, dez euros para o
gasóleo. Meia hora passada, feito o que havia a fazer, o telefone que toca, a
oportunidade aproveitada.
- Deixa-me atender, pode ser a minha filha.
Não era. Meias palavras, um diálogo breve, pouco a dizer.
- Sim, é boa hora às onze, eu vou.
De volta à vida. O fruir da ocasião.
- Era a filha, desculpa, vou ter de sair, queres ir
lavar-te? Para a próxima ficamos mais tempo, prometo.
Pede perdão da pressa, não da mentira. Desliga o rádio. Mudam
de mão as notas de vinte.
- É para ajuda do quarto, - diz-lhe ele beijando-a na face.
Porta aberta, porta fechada. De volta ao tablet, duas mensagens, enquanto um
toalhete passado à pressa, um copo de água e um rebuçado. Faltam vinte minutos
e já vestida. Calças e blusa pretas, cor que encobre a sujidade, a contrastar
com o cinza da camisa, por engomar. Sapatos
castanhos, que nunca viram graxa na vida, a pedir capas, reflectindo a imagem
duma miséria mal escondida. Já no elevador, curvada para a frente, dedos por
entre o cabelo, a dar-lhe volume, busca na mala as chaves do carro e a nota de
cinco que lá tinha ontem.
- Oxalá ainda dê tempo para meter gasóleo e comprar uma
sandes de queijo para o almoço - disse a si mesma.
terça-feira, 18 de novembro de 2014
o meu mundo mediano
Indiferente à escassez de requinte do verbo, ao uso
canhestro dos adjectivos, sobra-lhe em subtileza e observação o que lhe falta
em agilidade escrita. Porém, nem assim lê-lo deixa de ser um ritual que eu
cumpro com a cadência que ritma as mais distraídas repetições. É que, apesar de
tudo, é fácil fazê-lo. Fica em caminho e tudo o que lá se lê ou interpreta
também lá morre e se esquece. É o lado bom das coisas inúteis. É o meu mundo
mediano.
sábado, 15 de novembro de 2014
pequenos (quase minúsculos) poderes
Chegou um novo Director. Com um novo perfil. Com imensas outras
coisas novas.
Gosto dele. Algo me diz que vai dar mais luta que os anteriores.
Coitados.
Uma das coisas novas que trouxe com ele foi a namorada. Sim, leram bem - a namorada. Foi requisitada, para o poder acompanhar. Em comissão de serviço, que é uma forma de movimentação que está superiormente suspensa. Como se vê, aliás.
Gosto dele. Algo me diz que vai dar mais luta que os anteriores.
Coitados.
Uma das coisas novas que trouxe com ele foi a namorada. Sim, leram bem - a namorada. Foi requisitada, para o poder acompanhar. Em comissão de serviço, que é uma forma de movimentação que está superiormente suspensa. Como se vê, aliás.
Ontem estive o dia inteiro a vê-lo, a fazer a mudança. A tirar livros do carro. Caixas e caixas de livros. A avaliar pela quantidade deles, deve ser um tipo inteligente. Isto, embora eu não tenha nem metade dos que lhe vi despejar e, no entanto, já tenha tido ensejo
( em pouco mais de meia-hora )
de concluir que ter muitos livros não significa que se leiam. Mas, adiante que ainda é cedo e os Senhor Director ainda não se acomodou.
Talvez daí os disparates. Os tais, libertos num ímpeto de rajada, na tal meia-hora.
Também gostei que me tivesse dito para lhe redigir uma ou duas circulares.
- Eu depois assino-as e envio-as para publicação – foi como disse.
E eu, tão solícito como apanhado de surpresa, lá lavrei as duas disposições. Com um certo gozo, diga-se. Eu diria mesmo, com um mal contido sorriso nos lábios. Só de imaginar a cara do Senhor Director quando passasse os olhos pelo que rabisquei.
- Aqui estão, Senhor Director – levei-as já ao final do dia.
- Ah sim, deixe ficar que eu depois vejo e digo-lhe alguma coisa – respondeu-me indiferente.
- Eu depois assino-as e envio-as para publicação – foi como disse.
E eu, tão solícito como apanhado de surpresa, lá lavrei as duas disposições. Com um certo gozo, diga-se. Eu diria mesmo, com um mal contido sorriso nos lábios. Só de imaginar a cara do Senhor Director quando passasse os olhos pelo que rabisquei.
- Aqui estão, Senhor Director – levei-as já ao final do dia.
- Ah sim, deixe ficar que eu depois vejo e digo-lhe alguma coisa – respondeu-me indiferente.
Já me dispunha a regressar ao meu covil quando reparei na pose da namorada do Senhor Director. Sentada na sua secretária nova. Estrategicamente afastada do gabinete do apaixonado dirigente. A perna cruzada, em posição de atrair olhares, a deixar ver a lingerie, seguramente, como de resto parecia ser o propósito.
Fosse eu mais atento, melhor focado o olhar e de certeza a lingerie
a ver-se.
( Isto, é claro, se a usar!?)
( Isto, é claro, se a usar!?)
Enfim, lá aparentei a fleuma possível e subi aos meus aposentos reais. Vinha ainda a sorrir, face ao cenário recêm presenciado, quando a Matilde (que me secretaria há anos, sem precisar de cruzar as pernas), me perguntou:
- Não reparou na namorada do Senhor Director?
- Sim, reparei. O que tem?
- Não estava de perna ao léu? – indagou.
- Ah sim, isso. Estava pois. Estava mesmo. – E sorrimos então os dois. Cúmplices.
E aí pensei eu: com tantos livros para ler, é capaz de ser bem natural que o Senhor Director precise de algum alento extra, quem sabe?
Mas gosto dele, apesar de tudo. Algo me diz que vai dar mais luta que os anteriores. Coitados.
Mesmo por que, pouco tempo antes de eu sair, me tivesse procurado e me dissesse:
- Já vi as suas Circulares, estão excelentes, fiz apenas uma ou duas emendas, veja se concorda ? – e devolveu-me os dois preceitos, agora literalmente manuscritos a lápis.
Fiquei sem saber que pensar. Apenas desiludido. A achar que, afinal, o Senhor Director não vai dar assim tanta luta. Nunca tal coisa me tinha acontecido. As emendas feitas pelo Senhor Director eram:
- Justifique sempre o texto à esquerda. Acho que fica melhor. Alinhe sempre com a assinatura as saudações finais. Ah ! E não abrevie o meu nome (Já me esquecia desta).
Que desilusão senhor Director.
Tanto livro e nada. Tive de ser eu a rever o meu próprio texto. E a corrigir o erro palmar que lá cometera. Aquele, a ver se...
( Sim, era uma ratoeira. Quando me referi a um Código que não o é. Por se tratar antes de um Regulamento. )
Que desilusão Senhor Director.
Algo me diz que não vai dar mais luta que os anteriores. Afinal. Coitados.
Logo eu que não cruzo as pernas, nem nada.
sexta-feira, 14 de novembro de 2014
dos sonhos desfeitos e das ambições por satisfazer
Não é
de arrepiar a paisagem, nem o local fica sequer a dever à beleza que nos toca
nos sítios belos que retemos. É um lugar perto de tudo tal como de tudo é
distante. Um pedaço de nada a céu aberto. Um torrão do que se queira ali
criado. Ar puro, no pé da serra, soalheiro quanto baste, ventoso
quando a aragem cresce em rajada, uma estiagem das mais férteis no tempo que
resta. No entanto, se méritos daqui ainda não lhe sobram, valores também não
lhe faltam. De tal sorte que, se do oásis de paz, ou até mesmo de tudo o
que ali é quietude, eu tivesse de falar para dizer do merecimento do local,
mais não faria do que aflorar de leve o que aquele sítio tem de valioso. Ainda
assim (não há nada mais triste que o imerecido desencanto) por ali vive
quem não sonhe com outra coisa que não seja partir. Fugir em debandada deixando
para trás tudo o que a visão ignora quando se empenha em não ver o que está à
frente dos olhos.
Privação
podemos tê-la sem a querer, voluntariosa como sabemos que vem aquela que se
instala sem cerimónia. Assim se hospeda tantas vezes na nossa vida de onde não
sai por nada. Nada, aliás, é o que podem fazer, se não conste que a alcancem ou
facilmente dela se livrem, aqueles que a sorte deserdou . Contudo,
ambição cega, essa só nos cabe a que assumimos e acolhemos. E, mesmo quando a
cegueira nos faz definhar sob o pano de fundo da mais deprimente vida. Mesmo
quando escondemos por detrás do mais insano desinteresse a vontade (ou a
apetência) em fazer algo pela vida. Algo de útil, que nos dê sustento e
equilíbrio, senão do corpo que seja do espírito; algo que nos afaste do
desacerto, do engano e da trapaça que é a vida que levamos. Pouco crédito nos
sobra quando assim nos damos por vítimas do mais fútil viver. Fazendo dos dias
um repetido sonho de ter o que não temos, fazendo do tempo um eterno pedir como
se o segredo daquele inferno estivesse em darem-nos o que talvez nem precisemos
ou nunca seríamos capazes de governar – uma razão de viver.
(Retrato
de algumas vidas que observo. Gente que esbanja anos de existência encerrada
entre paredes de mentira e ilusão. Dizendo-se infeliz por não ter o que
gostava, descontente por não ser o que não é, mas incapaz de estar mais
que umas semanas num emprego, escudada nas mais absurdas desculpas: é
cansativo, ganha-se pouco, não me dão o justo valor, queria melhor que aquilo.
Definham
de tristeza os que escolheram por vida ser inúteis reclamantes, ignorando os
que a seu lado, com bem menos, são felizes, saudáveis e bem sucedidos. Crescem
na dignidade aqueles que aceitam as desventuras como elas os colhem e as moldam
na fortuna que os faz bem viver com o pouco que começaram por ter.
Mortificam-se e adoecem de tortura os se levantam, comem e dormem,
dizendo-se infelizes nos intervalos, sonhando com um destino a que, indolentes,
não se dispõem NUNCA a meter mãos.)
quarta-feira, 12 de novembro de 2014
o saber como prima causa
Não se lhes ouve pronunciar uma preferência,
um escritor favorito, um título de um livro que seja. A maioria deles acham que
ler é perder tempo. Um tempo de que nunca dispõem e em cuja falta se escudam.
No entanto, o acesso às auto-estradas virtuais confere-lhes (a todos) um estranho
entusiasmo cultural. Como se, falando de coisas que por aqui vejam, ou lhes marquem
o imaginário, assim consigam abarcar os limitados saberes que não têm. E é
disto que são feitos os que hoje se sentem iluminados, apesar de outrora cegos.
Efeito farsola dos tempos que se vivem neste habitat, alumiados por clarões duma
enganadora realidade, usada por pessoas fúteis (leia-se, vazias), donas de uma
ignorância de pasmar, que à mais pequena distracção sujam até aquelas que o não
são. Cuidado com os contágios!
segunda-feira, 10 de novembro de 2014
alheamento
São poucas, não mais que algumas, ainda
assim umas quantas, as coisas (e os seres) a que sou alheio ou que me deixam
indiferente. Elas (as coisas) vagas, sem tamanho, importância ainda menos. Os
outros (os seres), pouco mais que penumbra, que sem vida se aproximam e nem a sombra chegam, apesar do melhor (e repetido) dos
seus esforços.
Ninguém me tira que isto ainda sejam restos
do indescritível enfado de fingir, aquele que o meu avô tanta questão fez em me transmitir.
domingo, 9 de novembro de 2014
é raro acontecer, mas...
E pronto, concluindo o que não me parece nada provável, ou seja,
que isto venha a ter melhoras, vou mas é comprar castanhas. A menos que, nunca
se sabe, as haja de outras cores. Nesse caso comprarei antes cinzentas. Logo se
vê. O impossível está sempre a acontecer.
sexta-feira, 7 de novembro de 2014
culpa
E o senhor
quem é? Sou um seu leitor entusiasta, respondi. Digamos que sou mais um dos que,
de vez em quando, por uma razão ou outra, ou mesmo sem qualquer razão em especial,
compram os seus livros e, como se não bastasse, os lêem. Imediatamente o autor,
concluindo o autografar da obra, estendeu-me o livro e disse: olhe, deixe lá, afinal
faz aquilo que eu não sou capaz de fazer
pois nunca consegui libertar-me da culpa
de os ter escrito. Espero que ninguém me leve a mal por isso.
domingo, 2 de novembro de 2014
sábado, 1 de novembro de 2014
as voltas da vida
Pouca coisa me dói como a solidão
e abandono em que vivem o Sr. A. e a Dª F.. Octogenários, de quem os filhos se
livraram como se fossem lastro, quando há umas dezenas de anos fizeram da
emigração a solução para os seus males, deixando-os assim, a despertar diariamente para o brutal
efeito do desprezo e do isolamento a que foram condenados.
Indiferentes às suas privações e necessidades,
dedicando aos cães que escolheram ter, em vez de filhos, uma atenção que jamais
concederam aos pais, reduziram, aqueles dois emigrados monstros, a uma banal chamada
telefónica toda a sua actuação de descendentes.
À distância de um outro continente,
afastado milhares de quilómetros, sei-os alerta, sim sei, mas somente na avidez de
abutres com que esperam vir um destes dias buscar as sobras que estas duas vidas
de miséria lhes possam deixar – o andar em que vivem nos subúrbios da cidade.
Desinteressados do desamparo a
que a fome e a falta de acesso às mais elementares condições de saúde destinaram
aqueles que os deram à luz, prosseguem esses cruéis estafermos uma vida
desafogada de que não faz parte o cuidar, o acarinhar, o calor do beijo ou do apertado
abraço à carne da sua carne.
Trocaram o amor de filhos, coisa
que obviamente desconhecem o que seja, pela long distance call que lhes aquieta
a impiedosa consciência.
Enquanto isso, todos nós os que à
dezenas de anos assistimos ao ruir desta vergonhosa arquitectura, partilhamos o desconforto
de tentar conseguir que possam estas duas cansadas e sofridas almas, - pelo menos isso - conservar a dignidade e a decência de não interpretar por caridade as atenções que por
reconhecimento de amizade lhes vamos proporcionando.
sexta-feira, 31 de outubro de 2014
apenas uma parte da verdade
Por muito que a
escrita engane, e é sabido como engana bastante, quem a usa procura a verdade.
E, mesmo quando o que alcança não passa de um sentido desviado dela (da
verdade), encontrá-la nem sempre significa que ela nos agrade.
É assim que o
bálsamo da escrita funciona como uma máscara do nosso eu mais íntimo, atrás da
qual se esconde a mais irracional das mentiras.
Em suma, manda a
verdade que a escrita ilude, que embelezando a crueza da vida o que sobra é o
ruído onde a esperança se afunda.
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Herman: A difícil arte de ser único e grande *
* Por José Jorge Letria.
Herman está a comemorar quatro décadas de carreira artística e autoral, celebrando e fazendo-nos celebrar um percurso único na história do espectáculo e da cultura em Portugal. Que não haja dúvidas a este respeito, já que nunca ninguém levou para o palco e para o estúdio como ele a magia da voz, da criação de personagens, de vozes e de estilos, a espontaneidade e o riso, a poderosa crítica social e moral e a rara capacidade de nos mostrar este país no que tem de mais risível, mais inimitável e mais poderoso.
Recordo-me bem de Herman José quando a sua carreira artística começava. Foi em finais de 1974. Eu estava em estúdio a gravar o LP “Lutar/Vencer”, que sairia para o mercado em 1975, e lembro-me de um jovem magro, de cabelos compridos e calças à boca de sino, num canto do estúdio, com dificuldade em disfarçar uma timidez que não o impedia de fazer rir quem estava junto dele e de criar pequenos mundos a partir da realidade que observava e caricaturava. Era o princípio de uma carreira que rapidamente o levou para o teatro de revista, para os palcos da itinerância musical e depois para a rádio e para a televisão, fazendo dele uma personagem muito maior que todas as que foi inventando e recriando.
Herman começou como bom viola-baixo e nunca deixou de ser um excelente músico, sempre apoiado por executantes e arranjadores de excepção, de Pedro Osório e Thilo Krasman a Pedro Duarte. Depois começou a revelar outros talentos, incluindo o de desenhar, de criar personagens assombrosas- do Esteves ao Nelo da Idália- transformando o estúdio num enorme palco do mundo em que todos nos reinventámos rindo com ele e invejando a sua espantosa capacidade de ser único e nosso.
Hoje, ao comemorar 40 anos de carreira, Herman, artista e autor, não dispõe das condições que tinha há uns anos atrás para fazer grandes “shows” televisivos e para animar a noite lisboeta com as suas aventuras de empresário da restauração. A violência da crise serviu de pretexto para afastar dos ecrãs todos aqueles que, com grande talento criativo, nos faziam rir e obrigavam a pensar. Ficou o circo dos comentadores e dos analistas, que saem muito mais baratos e nos fazem rir muito menos, até porque vão mantendo as suas pequenas carreiras sempre de olhos postos no desejo pessoal de poder. Os artistas ficaram de fora e ganharam os que são apenas “artistas” do óbvio, do previsível e do tristonho, retrato de um pa ís que tem de se rir de alguma coisa para não morrer de angústia.
Herman tem hoje um modesto espaço televisivo em que deixa a marca do seu talento, mas que está muito longe do que lhe é e nos é devido, quando outro vento soprar de feição num futuro que se deseja próximo, com muito menos austeridade e muito mais criatividade e esperança. Da história fazem parte as gratas memórias de “O Tal Canal”, “Hermanias”, “Casino Royal” e tantos outros programas que, em momentos que não esquecemos, também sofreram os efeitos da censura moral e política que resultava de um modo reprovável de pensar a comunicação em Portugal depois do triunfo da democracia e da liberdade. Herman não esqueceu esses momentos, e nós também não.
Ao longo de 40 anos de carreira brilhante e única, Herman fez amizades, gerou grandes invejas e silêncios despeitados, construiu personagens, rostos e vozes e nunca se deixou confundir com os praticantes banais da “stand up comedy” em Portugal, empenhados e trabalhadores mas em regra desprovidos de um talento ofuscante e luminoso como o seu.
Há uns dias, Herman recebeu a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores, instituição de que é membro, e teve a elogiá-lo e à sua carreira duas pessoas que desempenharam um papel importante na sua vida: Nicolau Breyner e Nuno Artur Silva. Ambos sublinharam a excelência de uma obra que não tem par nem consente imitações, as de circunstância e as outras, porque Herman é maior que tudo isso. De resto, Nuno Artur Silva declarou, com pleno sentido de justiça, que Herman foi o verdadeiro 25 de Abril do humor em Portugal. Depois Herman usou o palco para nos recordar que continua no auge de uma carreira absolutamente invulgar, mesmo tendo-se em conta o muito que se faz por esse mundo fora em palcos e estúdios.
E todos estiveram nessa sessão com a convicção de que, aplaudindo, estavam a agradecer a excelência de um percurso interpretativo e criador que nos tornou melhores individual e colectivamente, porque quem ri com inteligência torna o mundo mais humano, mais livre e mais soberano. Quando lhe forem dadas de novo, e sempre a tempo, as condições que merece, poderemos dizer que Portugal reencontrou o melhor de si próprio, projectando no espelho de corpo inteiro tudo aquilo que o tem feito diferente e único. Tal como Herman José, artista absoluto que o esquecimento e a mediocridade nunca atingirão.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
a alegria de viver (em raiva de contraponto)
É estranho que este nosso existir em sociedade esteja a conduzir tão depressa e tão intensamente a esse fenómeno que se funde no perder de cor das palavras 'alegria de viver' em proveito duma fúria maior designada por 'raiva à flor da pele'.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
Não, não se trata de um mero problema de escolha nossa. Digamos antes tratar-se de alguém que esperava ‘mais’, ou ‘melhor’. Isso sim.
Confusão
que me faz esta coisa das pessoas dizerem que fizeram as suas opções, denunciarem
aquilo a que chamam as suas preferências, as suas escolhas em suma. A ideia com que fico é que boa parte delas arrasta
nisso os enganos de uma vida inteira. E, muito em particular, fazem-no sem dar
conta de que já são poucas, quase nenhumas, as ditas selecções em que tenha pesado a
sua determinação. No esplendor dos tempos que correm são raras as competências em
que somos nós a escolher, é-se escolhido. Muitas vezes, até sem chegarmos sequer a percebê-lo. Sinto muito se estou a decepcioná-los, mas é assim. Isto, claro, quando não se é dispensado. Em regra, por manifesta (e absoluta) falta de jeito. Ou de correspondência, sei lá
eu!? Como está em voga dizer-se, não há lugar para segundas oportunidades.
Ora,
daqui retiro eu a conclusão de que:
Tudo o que a vida nos dá é um certo enriquecimento, a que chamamos experiência pessoal, o qual, independentemente do contexto de onde provenha, e por mais amarga que seja tão trágica ironia, nos chega sempre tarde de mais. Tarde de mais.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
a vida privada já não é o que era.
Nos anos oitenta se perguntassem a
alguém o que achava de uma aplicação informática através da qual fosse possível
ver o que pensava, avaliar a sua imaginação, os seus gostos pessoais, expor
a sua intimidade, os seus relacionamentos, conhecer as suas limitações, a sua
criatividade ou os seus conhecimentos, muito pouca gente aceitaria integrá-la,
tenho a certeza.
Hoje, trinta anos decorridos, já temos as redes sociais e o
contraste passou a ser feito por oposição com aqueles que não usem as ditas aplicações, seja para
mostrar o rabo ou para espiolhar a vida íntima dos outros, seja batendo palmas, soltando gostos a torto e a direito, ou ali ir publicando vulgaridade em formato
‘peço-desculpa-mas-não-tenho-ideias-próprias’.
Não me surpreende, confesso. O que
ontem era mau hoje é muito bom. E, se há matéria em que a evolução se espraiou
por piores terrenos, esta, do advento das novas tecnologias, nela incluindo a
própria TV que nos entra pela porta dentro - paga a preços que deviam obrigar à
qualidade - passou a ser do mais reles e inferior que há.
Em termos de audiovisual o conceito
de produção nacional esgota-se hoje no mais nojento (leia-se asqueroso) dos
programas de voyeurismo. Massificado em canais (e canais) cujos horários nobres
são ocupados por milhões de espectadores, a espreitarem para dentro de uma casa
onde o vazio é preenchido por gente ainda mais vazia, ordinária e sem valores.
Gente desprezível, escolhida a dedo, que nós, cá fora, mostramos aos nossos
filhos, senão para que eles aprendam a preferir o que é nosso, porque a
alternativa não é melhor. E é assim quando a opção, nos canais ali ao lado, designados
por interactivos, o que passa é algo que não se esgota na má qualidade, a que ouvimos
chamar stand-up-qualquer-coisa. Que é como quem diz, programas de néscios, que se
intitulam humoristas, feitos para néscios, incapazes de aferir e entender que o desnível
de cultura a que estão a ser submetidos há muito baixou do zero e passou a ser
cotado a vermelho, por números negativos.
Esta sim, é a linha que divide o respeito das instituições
pela educação e cultura de um povo, pelas suas vidas privadas, atraídas ao
engodo da exposição a qualquer preço, indiferente à sua estupidificação. .
Dos anos oitenta para cá, um tsunami de modernidade levou à sua
frente a fatia da população que então se dizia educada, culta, informada,
esclarecida. À vez, todos juntos, ou cada um por si, foram forçados a ficar indiferentes,
e desinteressados. Ou, se preferirem, numa palavra ainda mais exacta – tacanhos.
O que os define, descurando as marcas da
roupa ou as lojas onde a compram, o modelo do carro ou os locais das férias, é
que são agora uma imensa maioria, no seio da qual perderam expressão as
famílias – avós, pais, filhos, não interessa – capazes de chegar ao fim do mês
com mais noites de serão a ler um livro (ler o quê?! o que é um livro!? livro
de quê!?), ou em que foram ao teatro, ou ao cinema, do que aquelas em que
ficaram a ver o nojo em exibição ou a
trocar postagens que outros fizeram.
Eis, pois, o esplendor da vida privada no ano 2014. É entrar, é
sentar, a TV está ligada, o portátil também. Venham daí, assistir há verdadeira
contradição no seio do entretenimento. Aprender a mediocridade.
Como já alguém disse: é
como se o mundo girasse e nós parados. À espera do milagre. Ou, talvez, quem sabe, da aplicação que nos
formate, de bestas em um-bocadinho-menos-estúpidos ou, ainda com mais sorte,
outra vez em seres racionais.
domingo, 26 de outubro de 2014
o preço de ser mulher
«Quão optimista é o que espera justiça dos juízes!»
Frase destacada da carta, datada de Abril último, escrita por
Reyhaneh Jabbari à sua mãe.
Detida desde 2007, quando tinha 19 anos, foi enforcada no Irão, no passado sábado, acusada de ter matado o homem que a tentara violar.
Detida desde 2007, quando tinha 19 anos, foi enforcada no Irão, no passado sábado, acusada de ter matado o homem que a tentara violar.
Acresce, que a confissão que a condenou à morte fora obtida
sob ameaças e tortura, não obstante as organizações de direitos humanos se terem mobilizado (sem êxito), para que tivesse um
julgamento justo.
sábado, 25 de outubro de 2014
depois de entrar na água com o propósito de me afogar, percebi que a maré estava baixa e desisti.
Sou um admirador da vulgaridade. Tenho por ela uma
atracção irresistível. De tal sorte que
já cheguei mesmo a tentar algumas imitações,
todas menores por comparação (felizmente!). Contudo, não há como ignorá-lo, venho
a conseguir cada vez melhores desempenhos. A conclusão, conforto-me em acolhê-la assim, é que consegui-los cativa tanto mais seguidores do que antes gerava de anticorpos. O tempo tratará
de confirmá-lo, vão ver.
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
é, até mais ver, a maior quantidade de desilusão que cabe numa só hora
Sim, eu sei, bem
podia ter escolhido outra coisa. Ideia parva esta de ir a uma terça-feira, logo
às dez da manhã, a uma bodega de uma livraria. Acabo a frase a já tenho a consciência a
justificar-se: tinhas dito que o livro saía
hoje. Eu sei, é verdade, foi por isso. Mas, nem assim, não desisto, não
deixou de ser uma ideia tola. Até por que, lá chegado, bem podia ter apontado
ao escaparate das tecnologias. É lá que passo tempos sem fim, a admirar todos
os gadgets de ponta, cheios de utilidade, ainda que nenhuma me seja proveitosa.
Aí sim, era garantido que uma hora ou duas.
Mas, não. Um café, um rissol e três livros. Sim, disse três, o outro não conta
que esse levo-o mesmo assim, sem ver, seja mau ou bom. Como se só a capa me
interessasse. E de facto, parece-me bem, estou na dúvida até… Pois se acho que
já sei a história, ainda sem a ter lido. Vejamos. É só a capa, comprova-se. Vai
na mesma.
(Se leram isto até
aqui e ainda não perceberam ao que me refiro este é o momento de desistirem.
Esqueçam o resto. Continuem a aperfeiçoar a leitura. A praticá-la. Quem sabe um
dia consigam entender mais do que as
legendas dos filmes da tarde de domingo. Já é um bom treino. Ler blogs também. Mais
ainda se nada soubermos de quem escreve.)
Os outros não. Há
que tomar-lhes o peso. Primeiro uma
passagem a ver se há lastro que me afunde. O café saiu uma merda. Deve ter
torrado mais seis meses do que devia. É sempre isto. Não aprendo. O rissol
quase igual. A crosta não aderiu à massa que, por vingança (tenho a certeza),
não aderiu ao recheio. Sim, eu sei, podia ter escolhido outra coisa. E já o
primeiro livro de lado. Outra bodega igual ao café e ao rissol. Nem penso duas
vezes e só paro na página 20 do segundo.
O crítico diz dos canais de TV interactivos o que eu seria capaz de dizer do
vinagre, sobretudo se estivesse estragado. Reconheço-lhe razão. Toda. Ainda
assim, o tema é mau demais, desisto do livro como há muito desisti de ser
espectador dos ditos. Ao terceiro peguei apenas com uma mão. A outra no copo de
água, disposto a levá-lo à boca. Ao meu lado a Lucy e o Heitor, acabados de
sentar, cada um ao seu telefone,
comunicam com os seus interlocutores como se o fizessem de viva voz. Sem
telefone. Eles aqui. Os outros na Ilha da Madeira. Este é bom, a escrita
cativa, ouve-se o mar de que a autora fala. Vai também. Levo os dois. Já não
suporto ouvir o Heitor. Menos ainda a voz da Lucy. Parecem saídos de um concurso
de drag queens. Afinal, só percebi agora, falam para o Brasil, S. Paulo. É
ainda mais longe. Estão justificados os gritos. Vou pagar. Valeu-me o copo de
água para engolir tanta desilusão junta numa só hora. É um acontecimento. Ou,
então, é o nada de que sou feito a estranhar tal crédito de sorte.
Principalmente agora, que tenho andando tão descoberto dela. Sim, eu sei, bem
podia ter escolhido outra coisa. Siga a procissão.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
muito próximo do elogio
É
raro o mês em que não almoçamos duas ou três vezes. Talvez já tenha até havido
alguns em que mais. É assim há anos. Não se conhecem variações. Já eramos ambos
adultos quando o destino nos cruzou. Ficámos cúmplices desde aí. De lá para cá
o tempo pouco mais tem feito do que consolidar sintonias. Por vezes pergunto-me
se serei eu que o vejo como o juiz que me julga, ou se será ele que me toma por
conselheiro. Certo é que nem um nem outro fazemos a desfeita de ignorar os pareceres
e as opiniões que partilhamos. Dele eu admiro a sua fria inteligência e a firmeza,
a determinação com que se empenha no que há que fazer (e faz), sem deixar para
depois. Para além disso há também um verbo – basta esse – que o descreve:
contemporizar. A sua vida tem sido feita disso. Contemporiza nem seja a seu
desfavor, pois há coisas que não têm preço. A paz (e a alusão que a incorpora)
é de todas a que lhe é mais cara. É por isso, eu sei, que trocaria sem hesitar,
dez amigos dos muitos que lhe pedem a bênção, por umas horas no deserto
(metáfora do sossego absoluto). De mim, ele admira, suspeito eu, muito mais que
ao resto e à falsa modéstia (não sei onde é que eu já li isto), a alucinada
estreiteza persuadida duma estatura inexistente. Seja como for, é daqui,
desta imparidade admirativa, que resulta o nosso volume. Há uns anos, quando
começámos por nos juntar, eramos só os dois, hoje somos umas centenas. Eu e ele
presentes, os outros não.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
relevos e enlevos
Dar desproporcionado relevo e importância às coisas que a não possuem é
algo que nos aproxima do confuso e pequenino absurdo que é ignorar o que isso representa. E
representa muito pouco de facto. Então, impus a mim mesmo a obrigação de
reconhecer que são muitas as coisas que realmente não possuem a importância que
lhes dou. Distinguir o embrulho do conteúdo é preciso para que possamos
valorizar apenas o que é digno disso. O resto, bom, o resto são reacções em que
de forma inadequada valorizamos porcarias que não cabem na cabeça de um
alfinete. O importante é amar no presente
os que amamos, e nos amam a nós, porque amanhã (ou logo à noite, quem sabe) o
futuro pode já não passar de uma luzinha
que se extinguiu.
segunda-feira, 20 de outubro de 2014
um beco que é capaz de não ter saída
É
estranho, e curioso ao mesmo tempo, que do lote dos meus conhecimentos, a gente
mais carente de amor que conheço seja também a mais incapaz de amar. Faz-me
isto lembrar uma estrada sem saída, o mais eficiente dos cárceres.
sábado, 18 de outubro de 2014
um dia, quem sabe!?
Um dia também gostava de ser um
vigaristazinho em potência, um ditadorzeco vestido de artista (mesmo que em
decadência), um trafulha daqueles que ficam com o dinheiros dos impostos de
todos nós e se acham muito dignos, um mau filho, um pior pai, um coleccionador
de engates, um supra-sumo do logro, em suma. E depois, poder ir à televisão, a um daqueles programas excelentes
para podermos fantasiar o ser supremo que não somos e assim sossegar a
consciência e enganar mais uns quantos.
Quem sabe um dia não perco a maior
riqueza que os meus me deixaram – a vergonha - e consigo fazê-lo.
Já me imagino a ser apresentado: hoje, entre
nós, para mais um dos nossos programas sobre alguém de quem mal nos informámos
e nada sabemos, caros telespectadores: o
imperador Napoleão.
É degradante mas parece-me eficaz.
Um dia, quem sabe?
sexta-feira, 17 de outubro de 2014
foi só um dedo entalado, uma unha partida.
Eu nem devia falar
nisto, mas, tudo bem, lá vai… Tenho andado tão afadigado com o Orçamento para 2015 que mal me tem
chegado o tempo para acalmar o sentimento de injustiça que é andarem por aí
tantos espíritos mesquinhos a dizer que o arranque do Ano Escolar (e até mesmo
do Mapa Judiciário) não foi um êxito.
Então não?!
Que coisa!
Esperava que esta mania de extrair significados de um ou dois pequenos incidentes sem importância,
a que nem os nossos PM e PR ligaram patavina, já vos tivesse passado.
Gentinha azeda,
cambada de transtornados que nada aprenderam daquela outra vez em que
reclamavam a demissão dessa douta personagem do conhecimento, do estudo e do saber,
que dá pelo nome de Dr. Relvas. Ainda estão recordados? Devem estar pois, passam a vida nisto.
Mania
da embirração a vossa, deviam era aprender a substituir a raiva pela indiferença, isso sim, apre!
quinta-feira, 16 de outubro de 2014
a anti-expectativa
Há pouco, estava eu ali a ser
parvinho numa gaveta do facebook, objectivo que, aliás, atinjo com
relativa facilidade, quando o tema em discussão me fez pensar em algo que nunca
antes me ocorrera. Trata-se do acto de oferecer flores à esposa. Com efeito, o
raciocínio a que cheguei, que por sinal não me
parece totalmente destituído de probabilidade, é que estamos perante um gesto
carregado de futuro. Ora, se levarmos em conta que o futuro não é mais do que um monte de expectativas, afigura-se-me que devia
estar aqui fortemente condicionado o prazer que a esposa sente sempre que as
recebe. Ou não? O entendimento é este:
há sempre uma legítima expectativa no marido que as oferece. (Não digam que
não, bemmmmmm…) E, pior que isso é que se trata de uma expectativa de localizada esperança. Ah, pois é! Um gesto em que se manifesta um sonho tão nítido e
detalhado quanto a vontade de o vermos realizado. Posto isto, bateu-me forte a
convicção de que não deviam entregar-se a grandes regozijos as contempladas esposas. Eu se fosse a elas
valorizava tanto mais o gesto quanto maior fosse a distância que separe o
casal. Ela em Vila Nova do Coito (Faro) e ele em Venda da Gaita (Pedrógão
Grande). É que, de contrário, protegido pelas desculpas que antecipo quanto ao
uso da linguagem que aí vem, sinto o momento remetido para aquele registo de
humor (vulgo anedota) das duas vizinhas que conversam à janela do oitavo andar,
quando o marido de uma delas, acabado de estacionar o carro, a leva a dizer à
outra: olha! vem ali o meu homem e hoje traz-me um ramo de flores, já vi que logo vou ter de
‘abrir-as-pernas’ (não liguem à expressão que, sem talento nem aptidões
intelectuais bastantes, tive de ir roubar ao repertório do Quim Barreiros); o
que leva a que a amiga lhe pergunte de imediato: então porquê vizinha, não tem
jarras em casa?
Enfim, esqueçam esta miséria (que acabam de ler) e esqueçam também aquela que nos espera no
Orçamento para 2015, que, (digo-vos eu)
parece uma coisa mas é outra, bem pior. Decididamente vou ter mesmo de
aumentar a medicação. Ponho-me para aqui a escrever com mais alegria do que
dignidade e o resultado é este. Não consigo estancar a verborreia. Desculpem.
quarta-feira, 15 de outubro de 2014
imitação
Há uns anos, quando comecei a fazê-lo, achava-me
único neste observar de troça a que se submetia a exposição social (tal como as
peneiras ou a cretinice) dos asnos a quem eu apontava o suco gástrico deste
passatempo que mais tarde vi ser definido como ‘a minha escrita’. Porém, pouco
tempo depois já me confessava incomodado pelo exagero em que tendia a cair
tantos eram os alvos que inesperadamente se punham a jeito, aliás, como bem define
aquele escritor que eu passo a vida a citar (esse que vocês sabem): «Deus deve gostar imenso dos patetas
porque não se cansa de fazê-los».
Depois, quando já esperava que o tempo e a própria aprendizagem que até
os tontos (e os porcos também) vão fazendo com o chafurdar no seu próprio
esterco, fui-me apercebendo que, longe de melhorar, a saga adquiria apetites de
crescimento. Os néscios não aprendem a sonhar noutros formatos nem de outras
maneiras e usam a fantasia (associada à estupidez em muitos casos) para se revelarem.
O resto (entenda-se por resto esta apetência de análise crítica), advém da
visibilidade com que, envaidecidos como só os ignorantes sabem sentir-se, se
gostam de mostrar, aqui e ali, por todo o lado, nas mais insólitas condutas,
nos mais merdosos comentários.
Portanto, ao invés de mudar o tércio dos meus disparos, o que tem vindo
a acontecer, malgrado o esforço enorme que já faço por me abstrair do que de
pior há entre os piores, é que são agora muitos os que até começaram por me
querer modelar a mão, a trazer até mim o desempenho de alguns desses tops da
mediocridade.
Assim, não raro me passou a acontecer ser confrontado com perguntas
como: já viste o que escreveu fulano de tal? Tu leste o comentário de beltrano?
Isto, quando não é mesmo um link ou um destaque, já acompanhado da observação
de quem o leu e logo ali achou que enviar-mo era favor de quem chega fogo à
pólvora. De quem sabe que o espectáculo está no fogo-de-artifício, não no seu
preparo.
Ora, estou eu aqui com tudo isto para vos vir agora apontar um desses
casos, de anunciadora estupidez, cuja
estrada até ele me foi aberta por um familiar, que, ao destinar-me uma das
perguntas ali acima reveladas, terá achado (tal como eu), que só por avançado
estado de ostentação, portanto insusceptível de deixar passar em claro, se
podia tecer tal alarvidade.
Com efeito, mesmo
sabendo que o faz no seio de um espaço (pouco mais que uma aldeia), onde os infoexcluídos constituem maioria, onde
só um palerma com tão pouca sobriedade
pode ser visto como gente de saber, não posso deixar de trazer à tona um
tal exemplo de pesca nas profundezas da imbecilidade.
Pois, trata-se o caso de uma banal frasezita,
acompanhada de imagem, onde expressa a
tola criatura que a editou a sua admiração pelas columbófilas aves e o seu
saber voar alto (imagine-se a altura a que voa o anormal), que mistura com a
sua generosidade
(quiçá senão grandeza) de ser(em) também capaz(es) de colher migalhas do chão.
Com franqueza, incapaz sinto-me eu de me contentar com o
parecer indignado de quem me trouxe mais esta pérola – o autor é uma fonte de
ultrajes desta natureza – e mesmo que eu
acredite que os faça todos por manifesta tacanhez cultural e deslocada cagança
de presunçoso, não consigo conter a pergunta:
que mensagem pode querer passar a alimária que escreve algo assim?
Claro que, vinda de quem vem, não me é fácil
encontrar palavras com que diga da minha indignação por tão pouca (e tão
limitada) inteligência. Mas, apesar disso, e ainda que descuradas outras piores
posições, da mesma mão saídas, cuja condenação a seu tempo também aqui libertei,
não sou capaz de deixar de pensar no que será o comportar na vida de um
exemplar humano destes. E, nem mesmo ignorados todos os ‘diz-que-disses’ de que
há conhecimento, me sobram dúvidas que só um pirilampo será capaz de o imitar. É que não é
fácil alternar entre a completa escuridão e um discreto piscar que mal se vê.
Só mesmo no breu da noite, quando misturado com os outros procure passar
pelo que jamais será.
Por tudo o que foi dito, meus caros, recomendo
muito cuidado, olhem que esta coisa do escárnio pega-se.
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