sábado, 27 de dezembro de 2014

amigos

Perguntam-me, por vezes, o que é feito do G…, da N… ou do F…. Que não sei é a resposta que invariavelmente dou. Não os perdi mas também não os trago comigo. Um pouco como se os tivesse esquecido algures, num desvão da vida a que só o acaso me fará voltar um dia, quem sabe? Então, mesmo sem que me peçam, eu lá acabo por explicar. Há um lote de pessoas, e aqui lote é palavra que mente já que são apenas três ou quatro, que dizendo-se meus amigos há muito  me habituaram a olhá-los com aquela quase indiferença com que se olham os imperativos a que por obrigação (ou por elegância, pouco importa) não se pode escapar. Depois de anos a fio em que me procuraram no local onde sempre souberam poder encontrar-me, aquilo que ficou não foi mais que isso mesmo. Ser procurado por eles. Então, lá chegados, tudo o que tinham para me dizer (leia-se, fazer) era o relato,  consubstanciado de amor-próprio, das suas vidas, dos seus feitos e glórias (nunca das suas misérias). Uma hora, duas ou três, em que jamais coube tempo para de mim saberem além daquilo que o meu olhar lhes disse. E, mesmo isso, ofereci-lhes eu sem encargos e sem que alguma vez o tenham perguntado ou lhes interessasse saber. Claro que não. Fazem-no assim há anos. Postados no palco das suas vidas, usando-me como incondicional espectador. Depois, bom, depois partem, sabendo (eles e eu) que hão-de de voltar de novo, não importa quando, para nova exibição. É por isso que, sem nunca ter conseguido explicar a mim próprio o que estive ali a fazer, ainda hoje me pergunto: que nome dar a esta gente?  Amigos? Amigos não. Chamar-lhes assim, parece-me óbvio, ofendia os que realmente o são. Os que, apesar de tudo, ainda são capazes de me acompanhar o cicatrizar das varizes, o crescer do cabelo ou o cavar das rugas, tanto faz.  Amigos é que não. 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

coração de cera

É Natal. Mesmo que o não fosse esta é uma altura do ano que faz de mim piegas. Como também Outubro e as suas chovidas noites. Não raras vezes dou por mim, a meio de uma notícia na TV, em plenos diálogos com os que amo (e o retribuem), por cima da prosa dos livros de cabeceira, e eis que os olhos rasos de lágrimas.  Então, dou ao esforço de as suster a prioridade do meu engolir. Uma ou outra imitação de tosse (ou catarro, nem sei)  a subir, ou a descer, tanto faz. Um discreto esfregar de olhos como quem os liberta do que neles entrou e ali não pertence. Enfim, são inúmeros os truques de me socorro para disfarçar o que não sei se disfarço. Depois, então, lá fico uns minutos a aquietar-me, de volta ao gelo emotivo que acredito ser a linha de água do meu mediano sentir.


Ou seja, melhor dizendo o que ficou por ser dito, à medida que me aproximo dos 60 estou (literalmente) a tornar-me um coração de cera. Nada a fazer. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

aos meus netos com amor



E porque não cabe em mim mais amor do que o tenho pelos meus, têm os últimos dias, no tempo que neles reservo a este respirar que é a escrita, decorrido à volta do esquiço a que deverá obedecer o tomo que quero deixar ao meu segundo neto.

Assim, a escassos dois dias de finalmente entregar a produzida obra ao mais velho (isto da obra é pretensão de mau vaidoso, não liguem), busco encontrar no plano do próximo o espaço em que despeje o que por ele tenho vindo a colectar.

Enfim, se mesmo não o sabendo fazer é tão difícil aquietar um avô empenhado em deixar equitativamente  repartidos os seus fracos dotes, não sei como seria caso soubesse realmente escrever.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

jantar(es)

Nesta altura do ano chegam-me sempre convites para eventos a que não encontro razão para ir. É verdade que são todos para comer. Sim é verdade. Ementas de luxo que só por si deviam já justificar a maçada. Maminha, coxinha, cupim, picanha, alcatra, costela de boi. Pelo meio, batata frita, rodelas de abacaxi, banana flambada, feijão preto. Quase no fim, buffet de sobremesas, doces, frutas e queijos. Cafés e digestivos a terminar. É o que quiseres, whisky, conhaque, outras bebidas, todas elas generosas. Todas elas à discrição.  Tenho a certeza que vais gostar. E eu, não tão certo disso, a perguntar-me que espécie de favor precisam. Que assédios me esperam. Gostas de um charuto, no fim? Um destes dias havemos de ir à Bobadela. Ou ao Cais do Sodré, que é mais perto. Conheço uns bares que vais adorar. Mulheres vorazes de prazer, sabes? Agora por isso, a ver se não me esqueço, tenho lá para te trazer uma caneta que vais gostar. Num estojo vermelho, lindo. Com um aparo que me disseram ser de ouro, já viste bem? Pensei logo em ti quando me a ofereceram. Um dias destes trago-a. Ah, e também trago uma peçazita para a tua mulher. De cristal. Da Boémia. Comprei no duty free de Los Angeles. É aqui que eu lhes digo que não posso ir. Que tenho compromissos inadiáveis. O gato doente. O cão em agonia. Os netos na hora de sair das AECs (Actividades de Enriquecimento Curricular, para os leigos). Ou, quando já nada resulta. Que não gosto daqueles sítios. Que só costumo comer em tascas. Tabernas escuras onde a liberdade de dar um bom arroto, a chouriço assado, no fim, já depois dos figos e das nozes e antes dos cafés, seja igual à certeza de que foi para só para comer que lá fui. Não havia outras razões, por baixo da toalha de mesa, de plástico, manhosa. Daquelas onde podemos pingar o vinho que quisermos que nunca deixa nódoas. E por falar em nódoas, há alturas do ano em que as do atrevimento são as que me vejo mais aflito para limpar.  

sábado, 13 de dezembro de 2014

a culpa é da realidade

Desta janela aberta onde me debruço a espreitar o horizonte e a apreciar a paisagem das almas alheias que por aqui passam, tenho visto algumas sobre as quais me enganei quando um dia lhes dei aquilo que aqui (e agora) lhes retiro. O pior é que, de janela aberta, já se sabe, um espirro ou dois e aí está a minha rinite de volta. Nada me tem tanta fidelidade como esta puta desta doença  (risquei o puta, espero que tenham reparado. Foi um engano vernacular, queria ter dito teimosa).  E é assim, pingo no nariz, vista a chorar, o peito cheio de gatos, essas maçadas, que procuro (sem encontrar) a diferença entre amigo e oportunista, generosidade e expediente, lealdade e interesse. E pronto, já vi passar bodes expiatórios que cheguem, já tenho a culpa mais aliviada. Da rinite, bem se vê. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

culpas que não se enterram

Primeiro, agachada no chão, ajeita a terra em volta com a vassoura de nylon, em aconchegos de cobertor. Depois, muda a água da jarra mais murcha que as flores de lótus que trouxera do quintal, no mês passado. Agora, já passa a lápide a pano, aqui e li molhado com borrifos de detergente. Por fim, com um pincel, aviva o relevo dos anjos, por baixo do nome. Afasta-se então, dois passos atrás, a contemplar o trabalho feito. Ainda faltam três quartos de hora para o próximo autocarro. Olha em redor a fazer tempo. E comparações. Há gente muito desmazelada, conclui, extraindo ao desleixo das outras campas a condenação de que se acha liberta.  A censura que lhe alivie o sentimento de culpa. Contudo, talvez porque não o queira recordar, comporta-se como se tivesse esquecido que enquanto a mãe foi viva nunca lhe deu a atenção que agora destina ao jazigo. Teve razões para isso. É o indulto com que protege a consciência. Escondeu-se dela durante anos. Declinava com educação a cortesia dos convites para almoços. E, quando não inventava desculpas, servia-se dos amuos com que se mostrava ofendida das coisas que ela lhe dizia.  Conseguiu, quase sempre assim, evitar expor-lhe à vista a existência infeliz que levava, à qual, diga-se,  também não deram grande ajuda os mal sucedidos casamentos que ficaram pelo caminho. Afinal, quem sabe, talvez temesse apenas que ela tivesse razão.  Agora, já a vassoura e o pincel também passados a água e detergente, enquanto tudo é arrumado no saco do Lidl, um último aflorar de dedos sobre a pedra fria da campa. Já só faltam vinte  minutos para a carreira. Não se pode distrair. Ainda está longe do portão. Quando se desse conta estava na hora. A mãe também teve muita culpa, ensaia pelo caminho, em jeito de justificação, a voltar-se para trás, num último olhar, já distante, a conferir se tudo no sítio. Ela gostava muito do Maciel, recorda. Nunca se conformou com o seu primeiro divórcio. Depois, aos outros, foi o ignorar que se sabe. O pedir a Deus que não fossem todos ainda piores. E no entanto foram. Pontual o autocarro, pensou ela ao vê-lo fazer a curva, pouco antes de se imobilizar  na paragem. No mês passado atrasou-se. Já por isso, desta vez deixou o pão encomendado. No entanto, com sorte, talvez ainda apanhe o talho aberto e ainda compre a dobrada para o almoço de amanhã. Há tantos dias que me anda a apetecer dobrada. Já na estrada, num olhar sobre os muros altos do cemitério, veio-lhe de novo à memória o desleixo de algumas das campas. Há realmente gente muito desmazelada. Alguns até (e também) com os mortos. Louvado seja.  

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

estupor(es)

Volvidos os quatro dias em que tive os fedelhos à minha guarda, o mais velho (6 anos de gente), incomodado com umas inexpressivas dores de barriga, lá foi ao pediatra.

No consultório – eu, ele e o pai – o seu diálogo com o médico retira-nos de cena e dá-lhes a eles o palco.

Assim, numa linguagem própria de quem já ‘apanhou’ mais dores de barriga pela frente do que eu terei apanhado pingos de chuva, o doutor lá foi arrancando as indicações que precisava:

- Onde dói?  Quando é que dói? Quando passa? Como é que passa? – entre outras.

Então, questionado sobre a ocasião em que terão começado as dores, o petiz lá explicou que  já duravam há quatro dias, desde que os pais o haviam deixado, com o irmão, em casa dos avós (a minha, claro) e tinham ido ‘dar uma volta’, aproveitando o feriado para recarregar  baterias.

Aqui chegados,  já o clínico dava por findo o exame de apalpação e todos os demais procedimentos a que recorrera como forma de despiste do que seria o seu diagnóstico, pergunta-lhe ainda:

- Olha lá ó João, e porque achas tu que tens tido estas dores de barriga?

Ao que, ali mesmo e de imediato, todos nós ficámos a saber a real razão de ser da maleita.

- Acho que é porque nestes quatro dias, em casa dos meus avós, só tenho comido porcarias. (sic)

E foi assim que, humilhado pelo seu próprio neto e ridicularizado pelo terapeuta (e pelo palerma do pai), o avô saiu dali a perguntar-se:

(Mas, por que raio é que eu ainda aqui venho aturar estes três estupores?)

Finalmente, esclarecido com evidência, como foi, o enigma das dores de  barriga, ali explicadas à criança como ‘dores normais quando se está a crescer’ acabou o doutor a recomendar-me (entre dentes) que naquelas ocasiões usasse a ‘técnica do smartie’ (isto é, o vulgo placebo), que administrado com o ritual apropriado (e a confiança inerente) se revelará um ‘medicamento’ 100% eficaz em tais ‘mazelas’.

Claro que hoje, dois dias decorridos sobre este episódio, ao entrar-me em casa onde vinha passar umas horas (lanchar e jantar) enquanto os pais ultimavam as compras de Natal ainda por fazer, a primeira coisa que tive o cuidado de dizer ao catraio foi que tivesse cuidado para não comer as tais porcarias que lhe faziam dores de barriga.

Então, teve o ‘artista’ a especial elegância de me esclarecer em jeito de reparação do mal:

- Sabes avô, o que o médico disse foi que eu posso comer coisas que não sejam saudáveis (panquecas, bolachas de Natal, sumos de fruta, caramelos, essas coisas assim) pois as minhas dores de barriga são 'por estar a crescer'.


Enfim! Estou a ficar velho, é o que é.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

pior que não saber é julgar que se sabe

Há erros que não existem, mudam de nome. Tornam-se equívocos ao darmos por eles.  Desaparecem como se de cegueira se tratasse. Hoje, ainda uns lapsos. Amanhã, uns quiproquós sem importância. Para a semana, tenho a certeza, recatados apontamentos de escrita criativa. 

Nada a fazer, a escrita funciona como uma lente que apenas apura os contornos. O resto, está nas dextras mãos que ao escolher as palavras a marcam de enfeites. Quando marcam. 
  

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

por acaso, por artes do destino

Tão bonita a renda do naperon. A minha mãe a fazê-la com impiedosa precisão. Levou anos naquilo. Um milímetro ou dois por dia. Anos a fio (literalmente).  

E afinal,

 dás tão pouco valor a estas coisas que até me faz confusão. Já te ocorreu que qualquer pessoa dotada de bom gosto e alguns (ainda que poucos) valores básicos percebe a fortuna que aqui está?

Tão poucas as iniciais ‘RM’ para tanto que me dizem. E eu de olhos semifechados, perdidos algures entre um risco e dois pontinhos que me fizeram companhia. Meia hora (talvez mais) a tentar ouvir o som dos pensamentos que aquele ruído impedia que chegasse até mim.

E afinal,

tivesse voz o sofrimento e aquele seria o seu som.

Tão escassa a vontade de me dar quando o que sobra é medo.

E afinal,

à medida que a escuridão dilui, a certeza de que nem as mãos adiante do pensamento serão capazes de me proteger de todas as inesperadas desgraças.

Tão curioso o que já me fizeram sentir pessoas por cuja vida passei e de quem um dia me afastei. Como quem se perde numa estrada sem destino. Muitas delas  a vê-las ao longe, sem perceber se é saudade o nome certo desse querer saber o que delas é feito, ou, se ao contrário, não é maior o desejo de fugir de tão negro horizonte. 

E afinal,


olhando bem, perante tão triste espectáculo, a resposta a chegar – era anseio. Uma vontade imperiosa de as apagar da memória que alguma vez tenham ocupado. 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

no que a net é fértil

Se há coisa de que a net é fértil é de logro. Embuste, trapaça, ilusão ou faz de conta. A cada pedra levantada corresponde um caso ou dois. Imagens maquilhadas por uma respeitabilidade que não se possui, perfis assentes em alicerces inexistentes, pessoas de bem que o não são, falsos deuses e deusas, ignorância oculta atrás de simulados saberes. Enfim, um nunca mais acabar de manhas de que se servem todos os ‘falsificadores de honestidade’ deste tempo.

Perante tal paisagem a coisa que mais me surpreende ainda é a facilidade com que aqui se muda de cara. Como se pudesse alguém esquecer hoje ‘a-merda-de-pessoa’ que fora até ontem  e, assim, do nada, bastasse aparecer agora, vestido/a de boas intenções para que os tomem pelo que nunca foram ou virão a ser - gente fiável.

Contudo, se a cada pedra corresponde um caso ou dois, outros calhaus há que albergam dezenas deles. Talvez, digo eu, sejam estes os mais fáceis de identificar, pela quantidade dos seus ardis, pelo que se lhes conhece da vida e se percebe que com ela não confere.

Há muitos até, que incapazes de alguma vez terem sido bons para si, ou para os seus, um belo dia aqui aparecem a querer sê-lo para os outros. Acrescentando engano à mentira. 

Enfim, a realidade é desconfortável à vista e sobre ela se intersectam muitas histórias, assuntos e até relações sem uma coisa, ou outra (isto é, sem história nem assunto). Daqui resulta que a minha compreensão dessa gente dependa, fundamentalmente, da proximidade que estabelecemos. Ou não (felizmente). 

a natureza da escrita

A vantagem da escrita (entre outras) é que consegue trazer-me delicadamente de volta ao trilho, cada vez que saio dele. Ou, quando as leituras são excessivamente inquietantes e perturbadoras. Tanto faz. 


domingo, 30 de novembro de 2014

vida comum

É domingo, a desculpa da falta de tempo não se aplica. Um dia inteiro refugiado nas leituras só podia acabar assim, com o castigo divino vingado na punição da montagem dos ornamentos natalícios.  Toma! 

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

quanto menos pêlo tem o cão mais as pulgas o atacam

A realidade é desconfortável à vista e sobre ela se intersectam muitas histórias, assuntos e até relações sem uma coisa (história), ou outra (assunto). Daqui resulta que a minha compreensão dessa gente dependa, fundamentalmente, da proximidade que estabelecemos. Ou não. 

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

presságio

Hoje, ao almoço, não percebi como aconteceu, pus uma nódoa nas calças. Mesmo sendo de pudim encarei aquilo como uma premonição. As nódoas  (todas elas) sempre foram um ponto de partida para a escrita. Nada a fazer. É só esperar. 

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

somos (quase) todos peixes num imenso oceano

O cardume é pequeno não por ataque dos predadores  mas por serem uns cobardolas os poucos membros que o compõem.  A maioria , alforrecas travestidas de peixes de meia água, não passam de fracas espécies receosas de dar cor ou nome aquilo que lhes corre nas veias e que não é mais do que uma massa gelatinosa, umas quantas células urticantes e água, muita água. Sempre dispostas a aplaudir as intervenções pimbas, a que não faltam e às quais não poupam os seus likes, no entanto tolhem a mão e a presença no que seja mostrar raça ou opinião, concordância  ou  acordo,  e mais não se lhes conhece que vulgar oportunismo.  Uma chamada deles é sempre (sempre, sempre) sinal que precisam de qualquer coisa. É exactamente por isso que, aos meus, faço questão de não deixar uma herança dessas. Ou ‘carne’ ou ‘peixe’, uma amiba é que não. 

sábado, 22 de novembro de 2014

o espelho do nosso tempo

Bom, acho que passada aquela moda de enfiar a cabeça num balde cheio de gelo chegámos a outra tão asinina como ela. A do vídeo difundido no FB, para agradecer a amizade de alguém. Ainda só vi uns vinte ou trinta e foi quanto bastou para me despertar uma imensa inveja. É sempre nestas ocasiões que ela me assalta assim, intensa de cobiça. Mais ainda por ver como são tão inspiradores aqueles momentos. Todos tão espontâneos, tão diferentes e originais. Entretanto, já estou a providenciar um vídeo desses, para os meus ricos pais, a agradecer-lhes a vida que me deram no vetusto ano de 1955. E, já que estou com isto, tratando-se de agradecer e pagar favores, será que a Autoridade Tributária aceita uns elogios destes, assim para inglês ver, como forma de pagar  o IUC? Dava um jeito do caraças!

Bom, e agora vou ali ao espelho da casa de banho dizer ao gajo que lá aparece reflectido quanto gosto dele, apesar da sua feiura que dá dó. 

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

perpétua surpresa



Só para avisar que amanhã vai chover. E, é claro, o facto de irem abrir as comportas do céu pode piorar ou melhorar as coisas, não se sabe. O estado do tempo é como a vida, uma perpétua surpresa.  

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

pensão fidelis (1)

É lá que passa os dias. Entre a porta e a cama de metal, desfeita, onde apenas um edredon, sujo, sem capa, sobre um lençol amachucado, sebento, tatuado pelo corpos que o usam. A filha distante, fugida há muito daquele sofrimento, indiferente aquele desacerto. A neta raramente a vê, como é próprio de quem também assim cresceu. Laços sabe fazê-los como ninguém, com a mesma facilidade com que os desfaz, dias depois, às vezes, já tem acontecido, uma semana, ou um mês, pouco importa quando. O tempo que o engano leva a revelar-se é a medida certa. Aos que chama amigos traça o contorno, anda em redor, mede as posses, esmola e acosta-se até que dê. Por vezes nem lhes cobra. Pagam em géneros. Às amigas faz o mesmo, mostra-se simpática, paciente para os filhos, até que lhes leva os namorados, lhes suga os maridos. Batem à porta. Outra marcação. Desliga o tablet.  Abre-a em seguida quase ao mesmo tempo que acende o rádio.
- Olá, como estás, há muito que não aparecias.
Estamos a meio do mês, são mais esparsas as solicitações. É nesta altura que os artifícios ganham cor. No perfil do facebook actualiza o curriculum, muda as fotos, culpa a Segurança Social, cola-se a outros desamparos na esperança que a confundam. Ou que dela tenham pena, tanto faz.  Pelo meio, já é costume, mais um ou outro imprevidente. Tudo serve. Uma sopa, um almoço, lanchamos se quiseres, dez euros para o gasóleo. Meia hora passada, feito o que havia a fazer, o telefone que toca, a oportunidade aproveitada.
- Deixa-me atender, pode ser a minha filha.
Não era. Meias palavras, um diálogo breve, pouco a dizer.
- Sim, é boa hora às onze, eu vou.
De volta à vida. O fruir da ocasião.
- Era a filha, desculpa, vou ter de sair, queres ir lavar-te? Para a próxima ficamos mais tempo, prometo.
Pede perdão da pressa, não da mentira. Desliga o rádio. Mudam de mão as notas de vinte.
- É para ajuda do quarto, -  diz-lhe ele beijando-a na face.
Porta aberta, porta fechada.  De volta ao tablet, duas mensagens, enquanto um toalhete passado à pressa, um copo de água e um rebuçado. Faltam vinte minutos e já vestida. Calças e blusa pretas, cor que encobre a sujidade, a contrastar com o cinza da camisa, por engomar.  Sapatos castanhos, que nunca viram graxa na vida, a pedir capas, reflectindo a imagem duma miséria mal escondida. Já no elevador, curvada para a frente, dedos por entre o cabelo, a dar-lhe volume, busca na mala as chaves do carro e a nota de cinco que lá tinha ontem.
- Oxalá ainda dê tempo para meter gasóleo e comprar uma sandes de queijo para o almoço - disse a si mesma.


terça-feira, 18 de novembro de 2014

o meu mundo mediano



Indiferente à escassez de requinte do verbo, ao uso canhestro dos adjectivos, sobra-lhe em subtileza e observação o que lhe falta em agilidade escrita. Porém, nem assim lê-lo deixa de ser um ritual que eu cumpro com a cadência que ritma as mais distraídas repetições. É que, apesar de tudo, é fácil fazê-lo. Fica em caminho e tudo o que lá se lê ou interpreta também lá morre e se esquece. É o lado bom das coisas inúteis. É o meu mundo mediano.

sábado, 15 de novembro de 2014

pequenos (quase minúsculos) poderes

Chegou um novo Director. Com um novo perfil. Com imensas outras coisas novas.
Gosto dele. Algo me diz que vai dar mais luta que os anteriores.
Coitados.
Uma das coisas novas que trouxe com ele foi a namorada. Sim, leram bem - a namorada. Foi requisitada, para o poder acompanhar. Em comissão de serviço, que é uma forma de movimentação que está superiormente suspensa. Como se vê, aliás. 

Ontem estive o dia inteiro a vê-lo, a fazer a mudança. A tirar livros do carro. Caixas e caixas de livros. A avaliar pela quantidade deles, deve ser um tipo inteligente. Isto, embora eu não tenha nem metade dos que lhe vi despejar e, no entanto, já tenha tido ensejo
( em pouco mais de meia-hora )
de concluir que ter muitos livros não significa que se leiam. Mas, adiante que ainda é cedo e os Senhor Director ainda não se acomodou.
Talvez daí os disparates. 
Os tais, libertos num ímpeto de rajada, na tal meia-hora.

Também gostei que me tivesse dito para lhe redigir uma ou duas circulares.
- Eu depois assino-as e envio-as para publicação – foi como disse.
E eu, tão solícito como apanhado de surpresa, lá lavrei as duas disposições. Com um certo gozo, diga-se. Eu diria mesmo, com um mal contido sorriso nos lábios. Só de imaginar a cara do Senhor Director quando passasse os olhos pelo que rabisquei.
- Aqui estão, Senhor Director – levei-as já ao final do dia.
- Ah sim, deixe ficar que eu depois vejo e digo-lhe alguma coisa – respondeu-me indiferente.

Já me dispunha a regressar ao meu covil quando reparei na pose da namorada do Senhor Director. Sentada na sua secretária nova. Estrategicamente afastada do gabinete do apaixonado dirigente. A perna cruzada, em posição de atrair olhares, a deixar ver a lingerie, seguramente, como de resto parecia ser o propósito. 
Fosse eu mais atento, melhor focado o olhar e de certeza a lingerie a ver-se. 
( Isto, é claro, se a usar!?)

Enfim, lá aparentei a fleuma possível e subi aos meus aposentos reais. Vinha ainda a sorrir, face ao cenário recêm presenciado, quando a Matilde (que me secretaria há anos, sem precisar de cruzar as pernas), me perguntou:
- Não reparou na namorada do Senhor Director?
- Sim, reparei. O que tem?
- Não estava de perna ao léu? – indagou.
- Ah sim, isso. Estava pois. Estava mesmo. – E sorrimos então os dois. Cúmplices.

E aí pensei eu: com tantos livros para ler, é capaz de ser bem natural que o Senhor Director precise de algum alento extra, quem sabe?
Mas gosto dele, apesar de tudo. Algo me diz que vai dar mais luta que os anteriores. Coitados.
Mesmo por que, pouco tempo antes de eu sair, me tivesse procurado e me dissesse:
- Já vi as suas Circulares, estão excelentes, fiz apenas uma ou duas emendas, veja se concorda ? – e devolveu-me os dois preceitos, agora literalmente manuscritos a lápis.

Fiquei sem saber que pensar. Apenas desiludido. A achar que, afinal, o Senhor Director não vai dar assim tanta luta. Nunca tal coisa me tinha acontecido. As emendas feitas pelo Senhor Director eram:
- Justifique sempre o texto à esquerda. Acho que fica melhor. Alinhe sempre com a assinatura as saudações finais. Ah ! E não abrevie o meu nome (Já me esquecia desta).

Que desilusão senhor Director.
Tanto livro e nada. Tive de ser eu a rever o meu próprio texto. E a corrigir o erro palmar que lá cometera. Aquele, a ver se...
( Sim, era uma ratoeira. Quando me referi a um Código que não o é. Por se tratar antes de um Regulamento. )
Que desilusão Senhor Director.
Algo me diz que não vai dar mais luta que os anteriores. Afinal. Coitados.

Logo eu que não cruzo as pernas, nem nada.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

dos sonhos desfeitos e das ambições por satisfazer

Não é de arrepiar a paisagem, nem o local fica sequer a dever à beleza que nos toca nos sítios belos que retemos. É um lugar perto de tudo tal como de tudo é distante. Um pedaço de nada a céu aberto. Um torrão do que se queira ali criado.   Ar puro, no pé da serra, soalheiro quanto baste, ventoso quando a aragem cresce em rajada, uma estiagem das mais férteis no tempo que resta. No entanto, se méritos daqui ainda não lhe sobram, valores também não lhe faltam. De tal sorte que, se do oásis de paz,  ou até mesmo de tudo o que ali é quietude, eu tivesse de falar para dizer do merecimento do local, mais não faria do que aflorar de leve o que aquele sítio tem de valioso. Ainda assim (não há nada mais triste que o imerecido desencanto)  por ali vive quem não sonhe com outra coisa que não seja partir. Fugir em debandada deixando para trás tudo o que a visão ignora quando se empenha em não ver o que está à frente dos olhos.
Privação podemos tê-la sem a querer, voluntariosa como sabemos que vem aquela que se instala sem cerimónia. Assim se hospeda tantas vezes na nossa vida de onde não sai por nada. Nada, aliás, é o que podem fazer, se não conste que a alcancem ou facilmente   dela se livrem, aqueles que a sorte deserdou . Contudo, ambição cega, essa só nos cabe a que assumimos e acolhemos. E, mesmo quando a cegueira nos faz definhar sob o pano de fundo da mais deprimente vida. Mesmo quando escondemos por detrás do mais insano desinteresse a vontade (ou a apetência) em fazer algo pela vida. Algo de útil, que nos dê sustento e equilíbrio, senão do corpo que seja do espírito; algo que nos afaste do desacerto, do engano e da trapaça que é a vida que levamos. Pouco crédito nos sobra quando assim nos damos por vítimas do mais fútil viver. Fazendo dos dias um repetido sonho de ter o que não temos, fazendo do tempo um eterno pedir como se o segredo daquele inferno estivesse em darem-nos o que talvez nem precisemos ou nunca seríamos capazes de governar – uma razão de viver.

(Retrato de algumas vidas que observo. Gente que esbanja anos de existência encerrada entre paredes de mentira e ilusão. Dizendo-se infeliz por não ter o que gostava,  descontente por não ser o que não é, mas incapaz de estar mais que umas semanas num emprego, escudada nas mais absurdas desculpas: é cansativo, ganha-se pouco, não me dão o justo valor, queria melhor que aquilo.

Definham de tristeza os que escolheram por vida ser inúteis reclamantes, ignorando os que a seu lado, com bem menos, são felizes, saudáveis e bem sucedidos. Crescem na dignidade aqueles que aceitam as desventuras como elas os colhem e as moldam na fortuna que os faz bem viver com o pouco que começaram por ter.  Mortificam-se e adoecem de tortura os se levantam, comem e dormem, dizendo-se infelizes nos intervalos, sonhando com um destino a que, indolentes,  não se dispõem NUNCA a meter mãos.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

o saber como prima causa

Não se lhes ouve pronunciar uma preferência, um escritor favorito, um título de um livro que seja. A maioria deles acham que ler é perder tempo. Um tempo de que nunca dispõem e em cuja falta se escudam. No entanto, o acesso às  auto-estradas virtuais confere-lhes (a todos) um estranho entusiasmo cultural. Como se, falando de coisas que por aqui vejam, ou lhes marquem o imaginário, assim consigam abarcar os limitados saberes que não têm. E é disto que são feitos os que hoje se sentem iluminados, apesar de outrora cegos. Efeito farsola dos tempos que se vivem neste habitat, alumiados por clarões duma enganadora realidade, usada por pessoas fúteis (leia-se, vazias), donas de uma ignorância de pasmar, que à mais pequena distracção sujam até aquelas que o não são. Cuidado com os contágios!

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

alheamento

São poucas, não mais que algumas, ainda assim umas quantas, as coisas (e os seres) a que sou alheio ou que me deixam indiferente. Elas (as coisas) vagas, sem tamanho, importância ainda menos. Os outros (os seres), pouco mais que penumbra, que sem vida se aproximam e nem a  sombra chegam, apesar do melhor (e repetido) dos seus esforços.


Ninguém me tira que isto ainda sejam restos do indescritível enfado de fingir, aquele que o meu avô tanta questão fez em me transmitir.

domingo, 9 de novembro de 2014

é raro acontecer, mas...


E pronto, concluindo o que não me parece nada provável, ou seja, que isto venha a ter melhoras, vou mas é comprar castanhas. A menos que, nunca se sabe, as haja de outras cores. Nesse caso comprarei antes cinzentas. Logo se vê. O impossível está sempre a acontecer. 

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

culpa

E o senhor quem é? Sou um seu leitor entusiasta, respondi. Digamos que sou mais um dos que, de vez em quando, por uma razão ou outra, ou mesmo sem qualquer razão em especial, compram os seus livros e, como se não bastasse, os lêem. Imediatamente o autor, concluindo o autografar da obra, estendeu-me o livro e disse: olhe, deixe lá, afinal faz aquilo que eu não sou capaz de fazer  pois nunca consegui libertar-me da culpa de os ter escrito. Espero que ninguém me leve a mal por isso.

domingo, 2 de novembro de 2014

olhos


E agora, já que o tema musical que estão a ouvir se chama 'My Father's eyes'...

família

Não adianta, não há como fugir-lhe. A melhor das famílias é aquela que construímos ao longo da vida. O tempo passa e o que sobrevive é apenas isso: o amor e a família. Esse muro protector que nos ampara se tudo o resto falhar. 

sábado, 1 de novembro de 2014

as voltas da vida

Pouca coisa me dói como a solidão e abandono em que vivem o Sr. A. e a Dª F.. Octogenários, de quem os filhos se livraram como se fossem lastro, quando há umas dezenas de anos fizeram da emigração a solução para os seus males, deixando-os assim, a despertar diariamente para o brutal efeito do desprezo e do isolamento a que foram condenados.  

Indiferentes às suas privações e necessidades, dedicando aos cães que escolheram ter, em vez de filhos, uma atenção que jamais concederam aos pais, reduziram, aqueles dois emigrados monstros, a uma banal chamada telefónica toda a sua actuação de descendentes.

À distância de um outro continente, afastado milhares de quilómetros, sei-os alerta, sim sei, mas somente na avidez de abutres com que esperam vir um destes dias buscar as sobras que estas duas vidas de miséria lhes possam deixar – o andar em que vivem nos subúrbios da cidade.

Desinteressados do desamparo a que a fome e a falta de acesso às mais elementares condições de saúde destinaram aqueles que os deram à luz, prosseguem esses cruéis estafermos uma vida desafogada de que não faz parte o cuidar, o acarinhar, o calor do beijo ou do apertado abraço à carne da sua carne.

Trocaram o amor de filhos, coisa que obviamente desconhecem o que seja, pela long distance call que lhes aquieta a impiedosa consciência.

Enquanto isso, todos nós os que à dezenas de anos assistimos ao ruir desta vergonhosa arquitectura, partilhamos o desconforto de tentar conseguir que possam estas duas cansadas e sofridas almas,  - pelo menos isso - conservar a dignidade e a decência de não interpretar por caridade as atenções que por reconhecimento de amizade lhes vamos proporcionando. 

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

apenas uma parte da verdade

Por muito que a escrita engane, e é sabido como engana bastante, quem a usa procura a verdade. E, mesmo quando o que alcança não passa de um sentido desviado dela (da verdade), encontrá-la nem sempre significa que ela nos agrade. 

É assim que o bálsamo da escrita funciona como uma máscara do nosso eu mais íntimo, atrás da qual se esconde a mais irracional das mentiras.


Em suma, manda a verdade que a escrita ilude, que embelezando a crueza da vida o que sobra é o ruído onde a esperança se afunda. 

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Herman: A difícil arte de ser único e grande *

* Por José Jorge Letria.


Herman está a comemorar quatro décadas de carreira artística e autoral, celebrando e fazendo-nos celebrar um percurso único na história do espectáculo e da cultura em Portugal. Que não haja dúvidas a este respeito, já que nunca ninguém levou para o palco e para o estúdio como ele a magia da voz, da criação de personagens, de vozes e de estilos, a espontaneidade e o riso, a poderosa crítica social e moral e a rara capacidade de nos mostrar este país no que tem de mais risível, mais inimitável e mais poderoso.

Recordo-me bem de Herman José quando a sua carreira artística começava. Foi em finais de 1974. Eu estava em estúdio a gravar o LP “Lutar/Vencer”, que sairia para o mercado em 1975, e lembro-me de um jovem magro, de cabelos compridos e calças à boca de sino, num canto do estúdio, com dificuldade em disfarçar uma timidez que não o impedia de fazer rir quem estava junto dele e de criar pequenos mundos a partir da realidade que observava e caricaturava. Era o princípio de uma carreira que rapidamente o levou para o teatro de revista, para os palcos da itinerância musical e depois para a rádio e para a televisão, fazendo dele uma personagem muito maior que todas as que foi inventando e recriando.

Herman começou como bom viola-baixo e nunca deixou de ser um excelente músico, sempre apoiado por executantes e arranjadores de excepção, de Pedro Osório e Thilo Krasman a Pedro Duarte. Depois começou a revelar outros talentos, incluindo o de desenhar, de criar personagens assombrosas- do Esteves ao Nelo da Idália- transformando o estúdio num enorme palco do mundo em que todos nos reinventámos rindo com ele e invejando a sua espantosa capacidade de ser único e nosso.

Hoje, ao comemorar 40 anos de carreira, Herman, artista e autor, não dispõe das condições que tinha há uns anos atrás para fazer grandes “shows” televisivos e para animar a noite lisboeta com as suas aventuras de empresário da restauração. A violência da crise serviu de pretexto para afastar dos ecrãs todos aqueles que, com grande talento criativo, nos faziam rir e obrigavam a pensar. Ficou o circo dos comentadores e dos analistas, que saem muito mais baratos e nos fazem rir muito menos, até porque vão mantendo as suas pequenas carreiras sempre de olhos postos no desejo pessoal de poder. Os artistas ficaram de fora e ganharam os que são apenas “artistas” do óbvio, do previsível e do tristonho, retrato de um país que tem de se rir de alguma coisa para não morrer de angústia.

Herman tem hoje um modesto espaço televisivo em que deixa a marca do seu talento, mas que está muito longe do que lhe é e nos é devido, quando outro vento soprar de feição num futuro que se deseja próximo, com muito menos austeridade e muito mais criatividade e esperança. Da história fazem parte as gratas memórias de “O Tal Canal”, “Hermanias”, “Casino Royal” e tantos outros programas que, em momentos que não esquecemos, também sofreram os efeitos da censura moral e política que resultava de um modo reprovável de pensar a comunicação em Portugal depois do triunfo da democracia e da liberdade. Herman não esqueceu esses momentos, e nós também não.

Ao longo de 40 anos de carreira brilhante e única, Herman fez amizades, gerou grandes invejas e silêncios despeitados, construiu personagens, rostos e vozes e nunca se deixou confundir com os praticantes banais da “stand up comedy” em Portugal, empenhados e trabalhadores mas em regra desprovidos de um talento ofuscante e luminoso como o seu.

Há uns dias, Herman recebeu a Medalha de Honra da Sociedade Portuguesa de Autores, instituição de que é membro, e teve a elogiá-lo e à sua carreira duas pessoas que desempenharam um papel importante na sua vida: Nicolau Breyner e Nuno Artur Silva. Ambos sublinharam a excelência de uma obra que não tem par nem consente imitações, as de circunstância e as outras, porque Herman é maior que tudo isso. De resto, Nuno Artur Silva declarou, com pleno sentido de justiça, que Herman foi o verdadeiro 25 de Abril do humor em Portugal. Depois Herman usou o palco para nos recordar que continua no auge de uma carreira absolutamente invulgar, mesmo tendo-se em conta o muito que se faz por esse mundo fora em palcos e estúdios.

E todos estiveram nessa sessão com a convicção de que, aplaudindo, estavam a agradecer a excelência de um percurso interpretativo e criador que nos tornou melhores individual e colectivamente, porque quem ri com inteligência torna o mundo mais humano, mais livre e mais soberano. Quando lhe forem dadas de novo, e sempre a tempo, as condições que merece, poderemos dizer que Portugal reencontrou o melhor de si próprio, projectando no espelho de corpo inteiro tudo aquilo que o tem feito diferente e único. Tal como Herman José, artista absoluto que o esquecimento e a mediocridade nunca atingirão.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

a alegria de viver (em raiva de contraponto)

É estranho que este nosso existir em sociedade esteja a conduzir tão depressa e tão intensamente a esse fenómeno que se funde no perder de cor das palavras 'alegria de viver' em proveito duma fúria maior designada por 'raiva à flor da pele'. 



terça-feira, 28 de outubro de 2014

Não, não se trata de um mero problema de escolha nossa. Digamos antes tratar-se de alguém que esperava ‘mais’, ou ‘melhor’. Isso sim.

Confusão que me faz esta coisa das pessoas dizerem que fizeram as suas opções, denunciarem aquilo a que chamam as suas preferências, as suas escolhas em suma. A  ideia com que fico é que boa parte delas arrasta nisso os enganos de uma vida inteira. E, muito em particular, fazem-no sem dar conta de que já são poucas, quase nenhumas, as ditas selecções em que tenha pesado a sua determinação. No esplendor dos tempos que correm são raras as competências em que somos nós a escolher, é-se escolhido. Muitas vezes, até sem chegarmos sequer a percebê-lo. Sinto muito se estou a decepcioná-los, mas é assim.  Isto, claro, quando não se é dispensado. Em regra, por manifesta (e absoluta) falta de jeito. Ou de correspondência, sei lá eu!?  Como está em voga dizer-se, não há lugar para segundas oportunidades.

Ora, daqui retiro eu a conclusão de que

Tudo o que a vida nos dá é um certo enriquecimento, a que chamamos experiência pessoal, o qual, independentemente  do contexto de onde provenha, e por mais amarga que seja tão trágica ironia, nos chega sempre tarde de mais. Tarde de mais. 

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

a vida privada já não é o que era.

Nos anos oitenta se perguntassem a alguém o que achava de uma aplicação informática através da qual fosse possível ver o que pensava, avaliar a sua imaginação, os seus gostos pessoais, expor a sua intimidade, os seus relacionamentos, conhecer as suas limitações, a sua criatividade ou os seus conhecimentos, muito pouca gente aceitaria integrá-la, tenho a certeza. 
Hoje, trinta anos decorridos, já temos as redes sociais e o contraste passou a ser feito por oposição com aqueles que não usem as ditas aplicações, seja para mostrar o rabo ou para espiolhar a vida íntima dos outros, seja batendo palmas, soltando gostos a torto e a direito, ou ali ir publicando vulgaridade em formato ‘peço-desculpa-mas-não-tenho-ideias-próprias’.
Não me surpreende, confesso. O que ontem era mau hoje é muito bom. E, se há matéria em que a evolução se espraiou por piores terrenos, esta, do advento das novas tecnologias, nela incluindo a própria TV que nos entra pela porta dentro - paga a preços que deviam obrigar à qualidade - passou a ser do mais reles e inferior que há.
Em termos de audiovisual o conceito de produção nacional esgota-se hoje no mais nojento (leia-se asqueroso) dos programas de voyeurismo. Massificado em canais (e canais) cujos horários nobres são ocupados por milhões de espectadores, a espreitarem para dentro de uma casa onde o vazio é preenchido por gente ainda mais vazia, ordinária e sem valores. Gente desprezível, escolhida a dedo, que nós, cá fora, mostramos aos nossos filhos, senão para que eles aprendam a preferir o que é nosso, porque a alternativa não é melhor. E é assim quando a opção, nos canais ali ao lado, designados por interactivos, o que passa é algo que não se esgota na má qualidade, a que ouvimos chamar stand-up-qualquer-coisa. Que é como quem diz, programas de néscios, que se intitulam humoristas, feitos para néscios, incapazes de aferir e entender que o desnível de cultura a que estão a ser submetidos há muito baixou do zero e passou a ser cotado a vermelho, por números negativos.
Esta sim, é a linha que divide o respeito das instituições pela educação e cultura de um povo, pelas suas vidas privadas, atraídas ao engodo da exposição a qualquer preço, indiferente à sua estupidificação. . 
Dos anos oitenta para cá, um tsunami de modernidade levou à sua frente a fatia da população que então se dizia educada, culta, informada, esclarecida. À vez, todos juntos, ou cada um por si, foram forçados a ficar indiferentes, e desinteressados. Ou, se preferirem, numa palavra ainda mais exacta – tacanhos.  O que os define, descurando as marcas da roupa ou as lojas onde a compram, o modelo do carro ou os locais das férias, é que são agora uma imensa maioria, no seio da qual perderam expressão as famílias – avós, pais, filhos, não interessa – capazes de chegar ao fim do mês com mais noites de serão a ler um livro (ler o quê?! o que é um livro!? livro de quê!?), ou em que foram ao teatro, ou ao cinema, do que aquelas em que ficaram a ver o nojo em exibição ou  a trocar postagens que outros fizeram.

Eis, pois, o esplendor da vida privada no ano 2014. É entrar, é sentar, a TV está ligada, o portátil também. Venham daí, assistir há verdadeira contradição no seio do entretenimento. Aprender a mediocridade.

Como já alguém disse: é como se o mundo girasse e nós parados. À espera do milagre.  Ou, talvez, quem sabe, da aplicação que nos formate, de bestas em um-bocadinho-menos-estúpidos ou, ainda com mais sorte, outra vez em seres racionais. 

domingo, 26 de outubro de 2014

o preço de ser mulher

«Quão optimista é o que espera justiça dos juízes!»

Frase destacada da carta, datada de Abril último, escrita por Reyhaneh Jabbari à sua mãe. 

Detida desde 2007, quando tinha 19 anos, foi enforcada no Irão, no passado sábado, acusada de ter matado o homem que a tentara violar. 

Acresce, que a confissão que a condenou à morte fora obtida sob ameaças e tortura, não obstante  as organizações de direitos humanos se terem mobilizado (sem êxito), para que tivesse um julgamento justo.

sábado, 25 de outubro de 2014

depois de entrar na água com o propósito de me afogar, percebi que a maré estava baixa e desisti.

Sou um admirador da vulgaridade. Tenho por ela uma atracção irresistível. De tal sorte que já cheguei mesmo a tentar algumas imitações, todas menores por comparação (felizmente!). Contudo, não há como ignorá-lo, venho a conseguir cada vez melhores desempenhos. A conclusão, conforto-me em acolhê-la assim, é que consegui-los cativa tanto mais seguidores do que antes gerava de anticorpos. O tempo tratará de confirmá-lo, vão ver. 

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

é, até mais ver, a maior quantidade de desilusão que cabe numa só hora

Sim, eu sei, bem podia ter escolhido outra coisa. Ideia parva esta de ir a uma terça-feira, logo às dez da manhã, a uma bodega de uma livraria. Acabo a frase a já tenho a consciência a justificar-se: tinhas dito que o livro saía  hoje. Eu sei, é verdade, foi por isso. Mas, nem assim, não desisto, não deixou de ser uma ideia tola. Até por que, lá chegado, bem podia ter apontado ao escaparate das tecnologias. É lá que passo tempos sem fim, a admirar todos os gadgets de ponta, cheios de utilidade, ainda que nenhuma me seja proveitosa.   Aí sim, era garantido que uma hora ou duas. Mas, não. Um café, um rissol e três livros. Sim, disse três, o outro não conta que esse levo-o mesmo assim, sem ver, seja mau ou bom. Como se só a capa me interessasse. E de facto, parece-me bem, estou na dúvida até… Pois se acho que já sei a história, ainda sem a ter lido. Vejamos. É só a capa, comprova-se. Vai na mesma.
(Se leram isto até aqui e ainda não perceberam ao que me refiro este é o momento de desistirem. Esqueçam o resto. Continuem a aperfeiçoar a leitura. A praticá-la. Quem sabe um dia consigam entender mais do que  as legendas dos filmes da tarde de domingo. Já é um bom treino. Ler blogs também. Mais ainda se nada soubermos de quem escreve.)

Os outros não. Há que tomar-lhes o peso.  Primeiro uma passagem a ver se há lastro que me afunde. O café saiu uma merda. Deve ter torrado mais seis meses do que devia. É sempre isto. Não aprendo. O rissol quase igual. A crosta não aderiu à massa que, por vingança (tenho a certeza), não aderiu ao recheio. Sim, eu sei, podia ter escolhido outra coisa. E já o primeiro livro de lado. Outra bodega igual ao café e ao rissol. Nem penso duas vezes e só paro  na página 20 do segundo. O crítico diz dos canais de TV interactivos o que eu seria capaz de dizer do vinagre, sobretudo se estivesse estragado. Reconheço-lhe razão. Toda. Ainda assim, o tema é mau demais, desisto do livro como há muito desisti de ser espectador dos ditos. Ao terceiro peguei apenas com uma mão. A outra no copo de água, disposto a levá-lo à boca. Ao meu lado a Lucy e o Heitor, acabados de sentar,  cada um ao seu telefone, comunicam com os seus interlocutores como se o fizessem de viva voz. Sem telefone. Eles aqui. Os outros na Ilha da Madeira. Este é bom, a escrita cativa, ouve-se o mar de que a autora fala. Vai também. Levo os dois. Já não suporto ouvir o Heitor. Menos ainda a voz da Lucy. Parecem saídos de um concurso de drag queens. Afinal, só percebi agora, falam para o Brasil, S. Paulo. É ainda mais longe. Estão justificados os gritos. Vou pagar. Valeu-me o copo de água para engolir tanta desilusão junta numa só hora. É um acontecimento. Ou, então, é o nada de que sou feito a estranhar tal crédito de sorte. Principalmente agora, que tenho andando tão descoberto dela. Sim, eu sei, bem podia ter escolhido outra coisa. Siga a procissão.  

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

muito próximo do elogio

É raro o mês em que não almoçamos duas ou três vezes. Talvez já tenha até havido alguns em que mais. É assim há anos. Não se conhecem variações. Já eramos ambos adultos quando o destino nos cruzou. Ficámos cúmplices desde aí. De lá para cá o tempo pouco mais tem feito do que consolidar sintonias. Por vezes pergunto-me se serei eu que o vejo como o juiz que me julga, ou se será ele que me toma por conselheiro. Certo é que nem um nem outro fazemos a desfeita de ignorar os pareceres e as opiniões que partilhamos. Dele eu admiro a sua fria inteligência e a firmeza, a determinação com que se empenha no que há que fazer (e faz), sem deixar para depois. Para além disso há também um verbo – basta esse – que o descreve: contemporizar. A sua vida tem sido feita disso. Contemporiza nem seja a seu desfavor, pois há coisas que não têm preço. A paz (e a alusão que a incorpora) é de todas a que lhe é mais cara. É por isso, eu sei, que trocaria sem hesitar, dez amigos dos muitos que lhe pedem a bênção, por umas horas no deserto (metáfora do sossego absoluto). De mim, ele admira, suspeito eu, muito mais que ao resto e à falsa modéstia (não sei onde é que eu já li isto), a alucinada estreiteza persuadida duma estatura inexistente. Seja como for, é daqui, desta imparidade admirativa, que resulta o nosso volume. Há uns anos, quando começámos por nos juntar, eramos só os dois, hoje somos umas centenas. Eu e ele presentes, os outros não.    

terça-feira, 21 de outubro de 2014

relevos e enlevos

Dar desproporcionado relevo e importância às coisas que a não possuem é algo que nos aproxima do confuso e pequenino absurdo que é ignorar o que isso representa. E representa muito pouco de facto. Então, impus a mim mesmo a obrigação de reconhecer que são muitas as coisas que realmente não possuem a importância que lhes dou. Distinguir o embrulho do conteúdo é preciso para que possamos valorizar apenas o que é digno disso. O resto, bom, o resto são reacções em que de forma inadequada valorizamos porcarias que não cabem na cabeça de um alfinete. O importante é amar no presente  os que amamos,  e nos amam a nós, porque amanhã (ou logo à noite, quem sabe) o futuro  pode já não passar de uma luzinha que se extinguiu. 

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

um beco que é capaz de não ter saída

É estranho, e curioso ao mesmo tempo, que do lote dos meus conhecimentos, a gente mais carente de amor que conheço seja também a mais incapaz de amar. Faz-me isto lembrar uma estrada sem saída, o mais eficiente dos cárceres.  

sábado, 18 de outubro de 2014

um dia, quem sabe!?

Um dia também gostava de ser um vigaristazinho em potência, um ditadorzeco vestido de artista (mesmo que em decadência), um trafulha daqueles que ficam com o dinheiros dos impostos de todos nós e se acham muito dignos, um mau filho, um pior pai, um coleccionador de engates, um supra-sumo do logro, em suma. E depois,  poder ir à televisão, a um daqueles programas excelentes para podermos fantasiar o ser supremo que não somos e assim sossegar a consciência e enganar mais uns quantos.

Quem sabe um dia não perco a maior riqueza que os meus me deixaram – a vergonha - e consigo fazê-lo.  

Já me imagino a ser apresentado: hoje, entre nós, para mais um dos nossos programas sobre alguém de quem mal nos informámos e  nada sabemos, caros telespectadores: o imperador Napoleão.

É degradante mas parece-me eficaz. 

Um dia, quem sabe?

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

foi só um dedo entalado, uma unha partida.

Eu nem devia falar nisto, mas, tudo bem, lá vai… Tenho andado tão afadigado com o Orçamento para 2015 que mal me tem chegado o tempo para acalmar o sentimento de injustiça que é andarem por aí tantos espíritos mesquinhos a dizer que o arranque do Ano Escolar (e até mesmo do Mapa Judiciário) não foi um êxito.  Então não?!

Que coisa! Esperava que esta mania de extrair significados de  um ou dois pequenos incidentes sem importância, a que nem os nossos PM e PR ligaram patavina,  já vos tivesse passado.


Gentinha azeda, cambada de transtornados que nada aprenderam daquela outra vez em que reclamavam a demissão dessa douta personagem do conhecimento, do estudo e do saber, que dá pelo nome de Dr. Relvas. Ainda estão recordados? Devem estar pois, passam a vida nisto.

Mania da embirração a vossa, deviam era aprender a substituir a raiva pela indiferença, isso sim, apre!

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

a anti-expectativa

Há pouco, estava eu ali a ser parvinho numa gaveta do facebook, objectivo que, aliás, atinjo com relativa facilidade, quando o tema em discussão me fez pensar em algo que nunca antes me ocorrera. Trata-se do acto de oferecer flores à esposa. Com efeito, o raciocínio a que cheguei, que por sinal não me parece totalmente destituído de probabilidade, é que estamos perante um gesto carregado de futuro. Ora, se levarmos em conta que o futuro não é mais do que um monte de expectativas, afigura-se-me que devia estar aqui fortemente condicionado o prazer que a esposa sente sempre que as recebe. Ou não?  O entendimento é este: há sempre uma legítima expectativa no marido que as oferece. (Não digam que não, bemmmmmm…) E, pior que isso é que se trata de uma expectativa de localizada esperança. Ah, pois é! Um gesto em que se manifesta um sonho tão nítido e detalhado quanto a vontade de o vermos realizado. Posto isto, bateu-me forte a convicção de que não deviam entregar-se a grandes regozijos  as contempladas esposas. Eu se fosse a elas valorizava tanto mais o gesto quanto maior fosse a distância que separe o casal. Ela em Vila Nova do Coito (Faro) e ele em Venda da Gaita (Pedrógão Grande). É que, de contrário, protegido pelas desculpas que antecipo quanto ao uso da linguagem que aí vem, sinto o momento remetido para aquele registo de humor (vulgo anedota) das duas vizinhas que conversam à janela do oitavo andar, quando o marido de uma delas, acabado de estacionar o carro, a leva a dizer à outra: olha! vem ali o meu homem e hoje traz-me um ramo de flores, já vi que logo vou ter de ‘abrir-as-pernas’ (não liguem à expressão que, sem talento nem aptidões intelectuais bastantes, tive de ir roubar ao repertório do Quim Barreiros); o que leva a que a amiga lhe pergunte de imediato: então porquê vizinha, não tem jarras em casa?


Enfim, esqueçam esta miséria (que acabam de ler) e esqueçam também aquela que nos espera no Orçamento para 2015, que, (digo-vos eu)  parece uma coisa mas é outra, bem pior. Decididamente vou ter mesmo de aumentar a medicação. Ponho-me para aqui a escrever com mais alegria do que dignidade e o resultado é este. Não consigo estancar a verborreia. Desculpem. 

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

imitação

Há uns anos, quando comecei a fazê-lo, achava-me único neste observar de troça a que se submetia a exposição social (tal como as peneiras ou a cretinice) dos asnos a quem eu apontava o suco gástrico deste passatempo que mais tarde vi ser definido como ‘a minha escrita’. Porém, pouco tempo depois já me confessava incomodado pelo exagero em que tendia a cair tantos eram os alvos que inesperadamente se punham a jeito, aliás, como bem define aquele escritor que eu passo a vida a citar (esse que vocês sabem): «Deus deve gostar imenso dos patetas porque não se cansa de fazê-los».

Depois, quando já esperava que o tempo e a própria aprendizagem que até os tontos (e os porcos também) vão fazendo com o chafurdar no seu próprio esterco, fui-me apercebendo que, longe de melhorar, a saga adquiria apetites de crescimento. Os néscios não aprendem a sonhar noutros formatos nem de outras maneiras e usam a fantasia (associada à estupidez em muitos casos) para se revelarem. O resto (entenda-se por resto esta apetência de análise crítica), advém da visibilidade com que, envaidecidos como só os ignorantes sabem sentir-se, se gostam de mostrar, aqui e ali, por todo o lado, nas mais insólitas condutas, nos mais merdosos comentários.

Portanto, ao invés de mudar o tércio dos meus disparos, o que tem vindo a acontecer, malgrado o esforço enorme que já faço por me abstrair do que de pior há entre os piores, é que são agora muitos os que até começaram por me querer modelar a mão, a trazer até mim o desempenho de alguns desses tops da mediocridade.

Assim, não raro me passou a acontecer ser confrontado com perguntas como: já viste o que escreveu fulano de tal? Tu leste o comentário de beltrano? Isto, quando não é mesmo um link ou um destaque, já acompanhado da observação de quem o leu e logo ali achou que enviar-mo era favor de quem chega fogo à pólvora. De quem sabe que o espectáculo está no fogo-de-artifício, não no seu preparo.

Ora, estou eu aqui com tudo isto para vos vir agora apontar um desses casos, de anunciadora  estupidez, cuja estrada até ele me foi aberta por um familiar, que, ao destinar-me uma das perguntas ali acima reveladas, terá achado (tal como eu), que só por avançado estado de ostentação, portanto insusceptível de deixar passar em claro, se podia tecer tal alarvidade.

Com efeito,  mesmo sabendo que o faz no seio de um espaço (pouco mais que uma aldeia), onde os infoexcluídos constituem maioria, onde só um palerma com tão pouca sobriedade  pode ser visto como gente de saber, não posso deixar de trazer à tona um tal exemplo de pesca nas profundezas da imbecilidade.

Pois, trata-se o caso de uma banal frasezita, acompanhada  de imagem, onde expressa a tola criatura que a editou a sua admiração pelas columbófilas aves e o seu saber voar alto (imagine-se a altura a que voa o anormal), que mistura com a sua generosidade (quiçá senão grandeza) de ser(em) também capaz(es) de colher migalhas do chão.

Com franqueza, incapaz sinto-me eu de me contentar com o parecer indignado de quem me trouxe mais esta pérola – o autor é uma fonte de ultrajes desta natureza – e  mesmo que eu acredite que os faça todos por manifesta tacanhez cultural e deslocada cagança de presunçoso, não consigo conter a pergunta:  que mensagem pode querer passar a alimária que escreve algo assim?

Claro que, vinda de quem vem, não me é fácil encontrar palavras com que diga da minha indignação por tão pouca (e tão limitada) inteligência. Mas, apesar disso, e ainda que descuradas outras piores posições, da mesma mão saídas, cuja condenação a seu tempo também aqui libertei, não sou capaz de deixar de pensar no que será o comportar na vida de um exemplar humano destes. E, nem mesmo ignorados todos os ‘diz-que-disses’ de que há conhecimento, me sobram dúvidas que só um pirilampo será capaz de o imitar. É que não é fácil alternar entre a completa escuridão e um discreto piscar que mal se vê. Só mesmo no breu da noite, quando misturado com os outros procure passar pelo que jamais será. 


Por tudo o que foi dito, meus caros, recomendo muito cuidado, olhem que esta coisa do escárnio pega-se.