sábado, 27 de dezembro de 2014

amigos

Perguntam-me, por vezes, o que é feito do G…, da N… ou do F…. Que não sei é a resposta que invariavelmente dou. Não os perdi mas também não os trago comigo. Um pouco como se os tivesse esquecido algures, num desvão da vida a que só o acaso me fará voltar um dia, quem sabe? Então, mesmo sem que me peçam, eu lá acabo por explicar. Há um lote de pessoas, e aqui lote é palavra que mente já que são apenas três ou quatro, que dizendo-se meus amigos há muito  me habituaram a olhá-los com aquela quase indiferença com que se olham os imperativos a que por obrigação (ou por elegância, pouco importa) não se pode escapar. Depois de anos a fio em que me procuraram no local onde sempre souberam poder encontrar-me, aquilo que ficou não foi mais que isso mesmo. Ser procurado por eles. Então, lá chegados, tudo o que tinham para me dizer (leia-se, fazer) era o relato,  consubstanciado de amor-próprio, das suas vidas, dos seus feitos e glórias (nunca das suas misérias). Uma hora, duas ou três, em que jamais coube tempo para de mim saberem além daquilo que o meu olhar lhes disse. E, mesmo isso, ofereci-lhes eu sem encargos e sem que alguma vez o tenham perguntado ou lhes interessasse saber. Claro que não. Fazem-no assim há anos. Postados no palco das suas vidas, usando-me como incondicional espectador. Depois, bom, depois partem, sabendo (eles e eu) que hão-de de voltar de novo, não importa quando, para nova exibição. É por isso que, sem nunca ter conseguido explicar a mim próprio o que estive ali a fazer, ainda hoje me pergunto: que nome dar a esta gente?  Amigos? Amigos não. Chamar-lhes assim, parece-me óbvio, ofendia os que realmente o são. Os que, apesar de tudo, ainda são capazes de me acompanhar o cicatrizar das varizes, o crescer do cabelo ou o cavar das rugas, tanto faz.  Amigos é que não. 

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

coração de cera

É Natal. Mesmo que o não fosse esta é uma altura do ano que faz de mim piegas. Como também Outubro e as suas chovidas noites. Não raras vezes dou por mim, a meio de uma notícia na TV, em plenos diálogos com os que amo (e o retribuem), por cima da prosa dos livros de cabeceira, e eis que os olhos rasos de lágrimas.  Então, dou ao esforço de as suster a prioridade do meu engolir. Uma ou outra imitação de tosse (ou catarro, nem sei)  a subir, ou a descer, tanto faz. Um discreto esfregar de olhos como quem os liberta do que neles entrou e ali não pertence. Enfim, são inúmeros os truques de me socorro para disfarçar o que não sei se disfarço. Depois, então, lá fico uns minutos a aquietar-me, de volta ao gelo emotivo que acredito ser a linha de água do meu mediano sentir.


Ou seja, melhor dizendo o que ficou por ser dito, à medida que me aproximo dos 60 estou (literalmente) a tornar-me um coração de cera. Nada a fazer. 

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

aos meus netos com amor



E porque não cabe em mim mais amor do que o tenho pelos meus, têm os últimos dias, no tempo que neles reservo a este respirar que é a escrita, decorrido à volta do esquiço a que deverá obedecer o tomo que quero deixar ao meu segundo neto.

Assim, a escassos dois dias de finalmente entregar a produzida obra ao mais velho (isto da obra é pretensão de mau vaidoso, não liguem), busco encontrar no plano do próximo o espaço em que despeje o que por ele tenho vindo a colectar.

Enfim, se mesmo não o sabendo fazer é tão difícil aquietar um avô empenhado em deixar equitativamente  repartidos os seus fracos dotes, não sei como seria caso soubesse realmente escrever.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

jantar(es)

Nesta altura do ano chegam-me sempre convites para eventos a que não encontro razão para ir. É verdade que são todos para comer. Sim é verdade. Ementas de luxo que só por si deviam já justificar a maçada. Maminha, coxinha, cupim, picanha, alcatra, costela de boi. Pelo meio, batata frita, rodelas de abacaxi, banana flambada, feijão preto. Quase no fim, buffet de sobremesas, doces, frutas e queijos. Cafés e digestivos a terminar. É o que quiseres, whisky, conhaque, outras bebidas, todas elas generosas. Todas elas à discrição.  Tenho a certeza que vais gostar. E eu, não tão certo disso, a perguntar-me que espécie de favor precisam. Que assédios me esperam. Gostas de um charuto, no fim? Um destes dias havemos de ir à Bobadela. Ou ao Cais do Sodré, que é mais perto. Conheço uns bares que vais adorar. Mulheres vorazes de prazer, sabes? Agora por isso, a ver se não me esqueço, tenho lá para te trazer uma caneta que vais gostar. Num estojo vermelho, lindo. Com um aparo que me disseram ser de ouro, já viste bem? Pensei logo em ti quando me a ofereceram. Um dias destes trago-a. Ah, e também trago uma peçazita para a tua mulher. De cristal. Da Boémia. Comprei no duty free de Los Angeles. É aqui que eu lhes digo que não posso ir. Que tenho compromissos inadiáveis. O gato doente. O cão em agonia. Os netos na hora de sair das AECs (Actividades de Enriquecimento Curricular, para os leigos). Ou, quando já nada resulta. Que não gosto daqueles sítios. Que só costumo comer em tascas. Tabernas escuras onde a liberdade de dar um bom arroto, a chouriço assado, no fim, já depois dos figos e das nozes e antes dos cafés, seja igual à certeza de que foi para só para comer que lá fui. Não havia outras razões, por baixo da toalha de mesa, de plástico, manhosa. Daquelas onde podemos pingar o vinho que quisermos que nunca deixa nódoas. E por falar em nódoas, há alturas do ano em que as do atrevimento são as que me vejo mais aflito para limpar.  

sábado, 13 de dezembro de 2014

a culpa é da realidade

Desta janela aberta onde me debruço a espreitar o horizonte e a apreciar a paisagem das almas alheias que por aqui passam, tenho visto algumas sobre as quais me enganei quando um dia lhes dei aquilo que aqui (e agora) lhes retiro. O pior é que, de janela aberta, já se sabe, um espirro ou dois e aí está a minha rinite de volta. Nada me tem tanta fidelidade como esta puta desta doença  (risquei o puta, espero que tenham reparado. Foi um engano vernacular, queria ter dito teimosa).  E é assim, pingo no nariz, vista a chorar, o peito cheio de gatos, essas maçadas, que procuro (sem encontrar) a diferença entre amigo e oportunista, generosidade e expediente, lealdade e interesse. E pronto, já vi passar bodes expiatórios que cheguem, já tenho a culpa mais aliviada. Da rinite, bem se vê. 

sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

culpas que não se enterram

Primeiro, agachada no chão, ajeita a terra em volta com a vassoura de nylon, em aconchegos de cobertor. Depois, muda a água da jarra mais murcha que as flores de lótus que trouxera do quintal, no mês passado. Agora, já passa a lápide a pano, aqui e li molhado com borrifos de detergente. Por fim, com um pincel, aviva o relevo dos anjos, por baixo do nome. Afasta-se então, dois passos atrás, a contemplar o trabalho feito. Ainda faltam três quartos de hora para o próximo autocarro. Olha em redor a fazer tempo. E comparações. Há gente muito desmazelada, conclui, extraindo ao desleixo das outras campas a condenação de que se acha liberta.  A censura que lhe alivie o sentimento de culpa. Contudo, talvez porque não o queira recordar, comporta-se como se tivesse esquecido que enquanto a mãe foi viva nunca lhe deu a atenção que agora destina ao jazigo. Teve razões para isso. É o indulto com que protege a consciência. Escondeu-se dela durante anos. Declinava com educação a cortesia dos convites para almoços. E, quando não inventava desculpas, servia-se dos amuos com que se mostrava ofendida das coisas que ela lhe dizia.  Conseguiu, quase sempre assim, evitar expor-lhe à vista a existência infeliz que levava, à qual, diga-se,  também não deram grande ajuda os mal sucedidos casamentos que ficaram pelo caminho. Afinal, quem sabe, talvez temesse apenas que ela tivesse razão.  Agora, já a vassoura e o pincel também passados a água e detergente, enquanto tudo é arrumado no saco do Lidl, um último aflorar de dedos sobre a pedra fria da campa. Já só faltam vinte  minutos para a carreira. Não se pode distrair. Ainda está longe do portão. Quando se desse conta estava na hora. A mãe também teve muita culpa, ensaia pelo caminho, em jeito de justificação, a voltar-se para trás, num último olhar, já distante, a conferir se tudo no sítio. Ela gostava muito do Maciel, recorda. Nunca se conformou com o seu primeiro divórcio. Depois, aos outros, foi o ignorar que se sabe. O pedir a Deus que não fossem todos ainda piores. E no entanto foram. Pontual o autocarro, pensou ela ao vê-lo fazer a curva, pouco antes de se imobilizar  na paragem. No mês passado atrasou-se. Já por isso, desta vez deixou o pão encomendado. No entanto, com sorte, talvez ainda apanhe o talho aberto e ainda compre a dobrada para o almoço de amanhã. Há tantos dias que me anda a apetecer dobrada. Já na estrada, num olhar sobre os muros altos do cemitério, veio-lhe de novo à memória o desleixo de algumas das campas. Há realmente gente muito desmazelada. Alguns até (e também) com os mortos. Louvado seja.  

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

estupor(es)

Volvidos os quatro dias em que tive os fedelhos à minha guarda, o mais velho (6 anos de gente), incomodado com umas inexpressivas dores de barriga, lá foi ao pediatra.

No consultório – eu, ele e o pai – o seu diálogo com o médico retira-nos de cena e dá-lhes a eles o palco.

Assim, numa linguagem própria de quem já ‘apanhou’ mais dores de barriga pela frente do que eu terei apanhado pingos de chuva, o doutor lá foi arrancando as indicações que precisava:

- Onde dói?  Quando é que dói? Quando passa? Como é que passa? – entre outras.

Então, questionado sobre a ocasião em que terão começado as dores, o petiz lá explicou que  já duravam há quatro dias, desde que os pais o haviam deixado, com o irmão, em casa dos avós (a minha, claro) e tinham ido ‘dar uma volta’, aproveitando o feriado para recarregar  baterias.

Aqui chegados,  já o clínico dava por findo o exame de apalpação e todos os demais procedimentos a que recorrera como forma de despiste do que seria o seu diagnóstico, pergunta-lhe ainda:

- Olha lá ó João, e porque achas tu que tens tido estas dores de barriga?

Ao que, ali mesmo e de imediato, todos nós ficámos a saber a real razão de ser da maleita.

- Acho que é porque nestes quatro dias, em casa dos meus avós, só tenho comido porcarias. (sic)

E foi assim que, humilhado pelo seu próprio neto e ridicularizado pelo terapeuta (e pelo palerma do pai), o avô saiu dali a perguntar-se:

(Mas, por que raio é que eu ainda aqui venho aturar estes três estupores?)

Finalmente, esclarecido com evidência, como foi, o enigma das dores de  barriga, ali explicadas à criança como ‘dores normais quando se está a crescer’ acabou o doutor a recomendar-me (entre dentes) que naquelas ocasiões usasse a ‘técnica do smartie’ (isto é, o vulgo placebo), que administrado com o ritual apropriado (e a confiança inerente) se revelará um ‘medicamento’ 100% eficaz em tais ‘mazelas’.

Claro que hoje, dois dias decorridos sobre este episódio, ao entrar-me em casa onde vinha passar umas horas (lanchar e jantar) enquanto os pais ultimavam as compras de Natal ainda por fazer, a primeira coisa que tive o cuidado de dizer ao catraio foi que tivesse cuidado para não comer as tais porcarias que lhe faziam dores de barriga.

Então, teve o ‘artista’ a especial elegância de me esclarecer em jeito de reparação do mal:

- Sabes avô, o que o médico disse foi que eu posso comer coisas que não sejam saudáveis (panquecas, bolachas de Natal, sumos de fruta, caramelos, essas coisas assim) pois as minhas dores de barriga são 'por estar a crescer'.


Enfim! Estou a ficar velho, é o que é.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

pior que não saber é julgar que se sabe

Há erros que não existem, mudam de nome. Tornam-se equívocos ao darmos por eles.  Desaparecem como se de cegueira se tratasse. Hoje, ainda uns lapsos. Amanhã, uns quiproquós sem importância. Para a semana, tenho a certeza, recatados apontamentos de escrita criativa. 

Nada a fazer, a escrita funciona como uma lente que apenas apura os contornos. O resto, está nas dextras mãos que ao escolher as palavras a marcam de enfeites. Quando marcam. 
  

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

por acaso, por artes do destino

Tão bonita a renda do naperon. A minha mãe a fazê-la com impiedosa precisão. Levou anos naquilo. Um milímetro ou dois por dia. Anos a fio (literalmente).  

E afinal,

 dás tão pouco valor a estas coisas que até me faz confusão. Já te ocorreu que qualquer pessoa dotada de bom gosto e alguns (ainda que poucos) valores básicos percebe a fortuna que aqui está?

Tão poucas as iniciais ‘RM’ para tanto que me dizem. E eu de olhos semifechados, perdidos algures entre um risco e dois pontinhos que me fizeram companhia. Meia hora (talvez mais) a tentar ouvir o som dos pensamentos que aquele ruído impedia que chegasse até mim.

E afinal,

tivesse voz o sofrimento e aquele seria o seu som.

Tão escassa a vontade de me dar quando o que sobra é medo.

E afinal,

à medida que a escuridão dilui, a certeza de que nem as mãos adiante do pensamento serão capazes de me proteger de todas as inesperadas desgraças.

Tão curioso o que já me fizeram sentir pessoas por cuja vida passei e de quem um dia me afastei. Como quem se perde numa estrada sem destino. Muitas delas  a vê-las ao longe, sem perceber se é saudade o nome certo desse querer saber o que delas é feito, ou, se ao contrário, não é maior o desejo de fugir de tão negro horizonte. 

E afinal,


olhando bem, perante tão triste espectáculo, a resposta a chegar – era anseio. Uma vontade imperiosa de as apagar da memória que alguma vez tenham ocupado. 

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

no que a net é fértil

Se há coisa de que a net é fértil é de logro. Embuste, trapaça, ilusão ou faz de conta. A cada pedra levantada corresponde um caso ou dois. Imagens maquilhadas por uma respeitabilidade que não se possui, perfis assentes em alicerces inexistentes, pessoas de bem que o não são, falsos deuses e deusas, ignorância oculta atrás de simulados saberes. Enfim, um nunca mais acabar de manhas de que se servem todos os ‘falsificadores de honestidade’ deste tempo.

Perante tal paisagem a coisa que mais me surpreende ainda é a facilidade com que aqui se muda de cara. Como se pudesse alguém esquecer hoje ‘a-merda-de-pessoa’ que fora até ontem  e, assim, do nada, bastasse aparecer agora, vestido/a de boas intenções para que os tomem pelo que nunca foram ou virão a ser - gente fiável.

Contudo, se a cada pedra corresponde um caso ou dois, outros calhaus há que albergam dezenas deles. Talvez, digo eu, sejam estes os mais fáceis de identificar, pela quantidade dos seus ardis, pelo que se lhes conhece da vida e se percebe que com ela não confere.

Há muitos até, que incapazes de alguma vez terem sido bons para si, ou para os seus, um belo dia aqui aparecem a querer sê-lo para os outros. Acrescentando engano à mentira. 

Enfim, a realidade é desconfortável à vista e sobre ela se intersectam muitas histórias, assuntos e até relações sem uma coisa, ou outra (isto é, sem história nem assunto). Daqui resulta que a minha compreensão dessa gente dependa, fundamentalmente, da proximidade que estabelecemos. Ou não (felizmente). 

a natureza da escrita

A vantagem da escrita (entre outras) é que consegue trazer-me delicadamente de volta ao trilho, cada vez que saio dele. Ou, quando as leituras são excessivamente inquietantes e perturbadoras. Tanto faz.