sábado, 27 de junho de 2015

ajuda

Ligou-me na quarta-feira da semana passada, estava com um problema. Queria saber se o podia ajudar.

Nunca antes lhe dissera que não, aquela não ia ser a primeira vez. Ouvi-o. Respondeu-me a uma ou duas questões que lhe coloquei, por fim lá o ajudei. Expliquei-lhe como devia fazer. Percebi que ficara satisfeito com a solução que lhe propus. Agradeceu e despedimo-nos.

No dia seguinte, já noite dentro, voltou a ligar. Estava com algumas dúvidas. Falara com dois entendidos, um deles a sua actual namorada, nenhum validara a minha solução. Estava de novo preocupado. Nem um nem outro conheciam a legislação a que eu fizera referência, trataram-na como um delírio, recomendaram-lhe que tivesse cuidado. Não sei o que hei-de fazer, rematou.

Era já tarde, ainda assim pedi-lhe uns minutos, era o tempo de que precisava para lhe enviar por email a solução que lhe dera no dia anterior. Junto com ela faria seguir o diploma legal que a fundamentava e permitia, acrescentei.

Ainda assim levei mais tempo, pelo menos uma hora, tenho a certeza. Precisei de digitalizar quase uma dúzia de folhas nas quais assinalei com destaque, colorido, ipsis verbis, a minha resolução.  Enviei-lhe então o email com pedido de ‘notificação de leitura’. Foi assim que vi que o lera uns minutos depois. Não obtive resposta.

Contudo, no dia seguinte, a meio da manhã, voltou a ligar-me. Queira agradecer-me o que fizera. Afinal, quis ele justificar-se, a minha namorada e o professor dela não sabiam que a Lei tinha sido alterada no ano passado, foi por isso que diziam que estavas enganado. Mais, acres centou ele, agradeceram que lhes tivesses enviado o preceito legal que acompanhava o email. E ele, é claro, aproveitava e pedia desculpa. Um dia destes almoçamos? - perguntou ainda.

Que sim, respondi-lhe eu. A tudo. Ao mesmo tempo que jurava a mim mesmo, pela minha  já de si contingente saúde, que não lhe desculparia. Nunca. Tão certo como a invenção de todos os compromissos do mundo, a que recorrerei para não estar disponível no dia do almoço. Melhor ainda, em todos os dias de todos os almoços.


Ele não sabe, pobre coitado, claro que não sabe, mas naquele dia a sua consideração (por mim) ultrapassou todos os limites. Até o da velocidade. Foi uma pena. Talvez um dia comece a aplicar a penalização por pontos, como as cartas de condução. Até lá, ficamos assim. Evito-o apenas. E minto-lhe, também. 

quinta-feira, 25 de junho de 2015

previdência

Não estou a gostar nada da sua cara, disparou ela sobre mim enquanto em movimentos mecânicos continuava a ligar-me os fios ao peito, aos pés, aos pulsos e até à alma também, alguns, não muitos. Compreendo-a, devolvi-lhe eu. É que tenho andando com uns problemas de saúde, que já vai sendo pouca. Umas vezes os nervos, outras a colite, a próstata, a bronquite, essas mazelas assim. Ah, então é dos que vão morrer velhos e saudáveis, teimou ela. Os casos mais graves que por aqui apanho, e também os que morrem mais novos, são os que imaginando-se de perfeita saúde não chegam sequer a saber o nome da doença de que são vítimas

quarta-feira, 24 de junho de 2015

a herança (dos incapazes)

O que me atrai ao campo é coisa pouca. Bens que a minha mãe e os meus avós (da parte dela) me deixaram, quase nada de valor mas muito de importância pelo mundo enorme de generosidade que contêm dentro deles. Da parte do meu pai (e das suas origens) o legado foi nenhum. Uma casa que, quando lá passo perto, no alto da estrada, confirmo sempre se ainda não desmoronou por completo, a qual, fruto da vontade arbitrária e senil de um primo (um palerma, coitado), apodrece em ruínas, condenando toda a família à vergonha (e tristeza) de não saberem honrar os seus antepassados. Nem que fosse assim, mantendo de pé o pouco (que é tanto) que lhes deixaram. Dali a única dignidade esperada é a derrocada final que, essa sim, possa conferir a todos nós (e somos já bastantes) a consciência descansada de quem não foi capaz de melhor. Mas voltemos ao que aqui me traz que, isso sim, possui valor por comparação com este nojo existencial.

O que me atrai ao campo, dizia, para lá do gosto em cuidá-lo, bem se vê, é uma consolidada vontade de deixar aos meus netos, naqueles metros de terra, um pedaço de história que me defina. Só por isso tenho levado parte da vida, solitário, a cuidar de telhados, paredes e muros, árvores, algumas das quais plantei, e de pedras que afasto e junto em prol do ingénuo propósito de, quem sabe, um dia os poder levar a pensar: o nosso avô é que as pôs (e deixou) aqui.

Tem sido assim que me tenho mantido preso ao passado que outros me deixaram, por certo com outros intentos, e que me foi outorgado com a condição de herdeiro.

A herança é uma figura de estilo, sei-o bem, que nos leva a fazer dela o que a vida (e a recordação) daqueles que estão na sua raiz nos impõe. Uns cospem-lhes em cima, são-lhes indiferentes, deixando que se fundam no rótulo que lhes atribuo – desmazelados – a consideração que lhes têm, outros, fazem dela a estátua erigida a título póstumo. 

É por isso que, sendo tão pouco o que faço pela que me coube, ao olhar em volta e perceber o desleixo e o descuramento a que os outros destinam as suas, não deixo de sentir que lhes estou grato e os considero por não terem abandonado ao desprezo o que também antes receberam.

Ainda assim, perverso como é o destino quando lhe dá para escrever torto o que tanto fazemos questão de manter aprumado, não deixo de temer, confesso, o que me espera de castigo quando for eu a deixar aos meus o pouco que lhes guardo.

É que, a avaliar pelo que me mostram na forma como cuidam o que é já seu, não me sobram muitas dúvidas que o fim da consideração estará para breve.

Esta acaba por ser, afinal, a razão única porque espero que com a minha partida, os que deixo e me sucedam vendam (nem que seja a pataco) o que não saibam ou não queiram cuidar. Prefiro considerar essa possibilidade a imaginar entregue ao desleixo aquilo que tanto empenho (e sacrifícios) terá custado a quem até ali o fez chegar.


Por isso, mais do que tudo, o que anseio para os vindouros é que a vida lhes permita a lucidez de não me castigarem a mim, depois de morto, como vejo outros castigarem os seus, quase parecendo não perceber como não casa a bota com a perdigota quando em bicos de pés, a quererem empoleirar-se nos vários pedestais a que se esforçam por subir, imaginam que não se note a incapacidade que os tolhe de sequer cuidar do que é seu. 

domingo, 21 de junho de 2015

a hóstia

Pode ainda não ser amanhã o dia em que faça o que ando para fazer há mais de um ano. Digo-o hoje assim, sem constrangimentos, talvez por saber já que não irei sentir remorsos. Quem anda há tanto tempo a adiar uma coisa de tão vital importância não sente arrependimento. Só frustração. Talvez um dia isto me passe. Contudo, sei-o bem, ainda não será amanhã esse dia. Entretanto, para aproveitar o tempo, talvez vá fazer umas coisas que trago adiadas desde a adolescência. Uma delas é ver se ainda está comestível a hóstia que uma vez roubei lá da sacristia. Guardei-a, ainda me lembro, dentro dos Lusíadas, logo a seguir ao concílio dos deuses, imediatamente antes do Vasco da Gama receber os mouros e, nunca mais me lembrei de ir ver se ainda está em condições de me remir de alguns dos pecados que me atormentam. Quem sabe, pode ser que não se tenha colado às folhas, como elas se colavam ao céu da boca quando as recebia em comunhão.  Na dúvida, o melhor é manter também esta tarefa em fila de espera. Caramba, nos tempos que correm uma hóstia não é coisa que se desdenhe. A menos que tenha perdido os poderes de salvar, ou as vitaminas. Logo vejo. 

sexta-feira, 5 de junho de 2015

dois enganos, uma mesma tristeza *

Tenho uma reconhecida dificuldade no trato com certos ‘senhores doutores’, daqueles que passam receitas (mas só com certos, felizmente muito poucos, diga-se), sobretudo quando, por comparação, me apercebo que fui educado a ter pelos cães mais respeito e consideração que aquela que os vejo ter pelas pessoas.

Eu explico.

Faz agora um ano acolhi o seu ‘problema’ com o interesse, e a importância, com que acolho todos (ou quase todos), mais ainda por me ter chegado por parte de um amigo, daqueles já antigos que trago no aconchego do peito. E, como há quem diga que os amigos dos meus amigos meus amigos são, lá o recebi como tal. Contudo, há excepções para este axioma como irão poder ver.

Então (prosseguindo o triste relato), percebendo como estava na minha mão a faculdade de lhe poder poupar uns milhares de euros (sim, leram bem, disse milhares), tive naquela ocasião o ‘elevado prazer’ de receber dezenas de telefonemas seus. Pedidos de esclarecimentos, informações de que carecia, ajudas indispensáveis, pedidos de intervenção, eu sei lá que mais...

Até que, chamando a mim um trabalho que sabia medonho de exigente, me dispus, eu mesmo, a fazer o que mais ninguém lhe faria. E assim, decompondo as horas livres na atenção que o seu caso exigia, consegui levar a bom porto a tal poupança reavida num pagamento a que estaria condenado por manifesta incapacidade de resolução de um caso difícil que a vida (e uma generosa herança) lhe oferecera.

Ora, se até aqui nada de mais vos pode parecer estranho, o que a mim me tira do sério é que, meia dúzia de meses depois da (re)solução que lhe ofereci (literalmente), o referido espécime, tendo voltado a estar ao meu lado (ele e a família), por ocasião da comemorações da ‘passagem de ano’, tenha sido incapaz de sequer as boas noites me dar. Isto, é evidente, sem descurar que, por mais outras duas ou três vezes, também ao meu lado tivesse estado sem que fosse capaz de um gesto da mais vulgar simpatia. Já nem digo telefonar-me, pois admito que depois de tantas chamadas que me fez, quando precisou, tenha certamente perdido o meu número. Coisa que acontece muito a este tipo de gente. 

O outro ‘senhor doutor’, por sinal com quem tenho uma relação de vizinhança e proximidade que muito jeito lhe dava, era à data médico de família dos velhotes cá de casa. E assim, depois de um belo dia me ter abordado, na sala de espera do seu consultório, logo ali tratou de me expressar o seu desconforto pela má qualidade do trabalho que lhe vinha a ser prestado pelo profissional a quem pagava. Ora foi dali que nasceu o meu compromisso de lhe dar ‘uma-vista-de-olhos’ ao seu caso, o que fiz com tal disponibilidade, e eficácia (passe a imodéstia), que dali veio também a resultar um relacionamento de dependência, sazonal, relativamente ao acompanhamento que passou a solicitar-me.

Foi assim que, durante um ano ou dois, sem qualquer espécie de contrapartida que dali me tenha vindo (fosse de que género fosse, esclareça-se), e apenas pela amizade que nos ligava o facto de sermos amigos de infância, lhe dispensei tal ajuda que, inevitavelmente, o levou a ter para comigo uma mais curta proximidade nas abordagens de aconselhamento que tornou frequentes e repetidas.

Ora, foi precisamente daí que veio a resultar aquele que se tornou o desfecho final desta nossa, eficaz e funcional, relação. Eu passo a contar.

Era domingo e, preparando-me eu para sair de casa, justamente para ir à farmácia de serviço aviar a medicação que aliviasse o desconforto de um familiar a padecer daquilo que nos pareciam ser vertigens, eis que me aparece o meu ‘bom amigo’ ao portão da garagem. Uma pequena folha numa das mãos e com ela o pedido de que o ajudasse a melhor satisfazer o que um qualquer serviço público oficialmente lhe requeria. E nisto, logo ali, apercebendo-me do que se tratava, eu me dispus a sossega-lo: deixar estar que eu trato-te disto, não precisas de te preocupar.

E assim, sumariamente resolvido que ficou mais um dos seus variados problemas, pensei eu em fazer-lhe aquilo que nunca antes fizera.

Já agora, que estás aqui, queria pedir-te um favor, a F… acordou hoje cheia de tonturas e temos estado até agora sem perceber se é de vertigens que se trata ou apenas de algum sintoma de origem cervical.

E é então que o ‘senhor doutor’, acertando em cheio na minha mais inesperada expectativa, me propõe:

- Ah, está bem, está bem, ela que vá lá amanhã à tarde, ao consultório, que eu vejo isso.

(Estou a imaginar-vos a sorrir pelo que acabam de ler, é claro.)

Todavia, vocês jamais poderiam sabê-lo, morreu ali, naquela frase, aquela que foi a minha vasta ingenuidade (e com ela toda a disponibilidade) com que sempre lhe acolhera as suas múltiplas necessidades.

De tal sorte que, tenho a certeza, a ‘triste figura’ ainda hoje se deve interrogar sobre que estranho bicho me mordera a ponto de nunca mais, dali em diante, me ter disposto sequer a ouvi-lo.

Foi até assim que, no dia seguinte, manhã cedo, eu mesmo lhe liguei, ainda a caminho do emprego:

- Olha, estás bom, era só para te dizer que deixei na tua caixa do correio o papel que onde me deste, é que afinal eu hoje não vou ter disponibilidade para te resolver o problema e, se não te importas, não vá aquilo ser urgente, vais lá tu hoje e tratas do assunto.

Sim, podem dizê-lo, são realmente raros os que escapam ao ‘carisma’ com que lhes retribuo o bem que me fazem. A maioria, como se percebe, apenas acaba a lamentá-lo. É quanto baste.

Sempre vivi (e penso continuar a fazê-lo) a vida como quem percorre uma estrada de expectativas (e de sintonias) extraordinárias. Contudo, mal seria se ao fim de tantos anos de caminho não tivesse já a intuição de perceber que, se tal não acontece, é porque, afinal, nos enganámos. Metemos por uma estrada para nenhures. 

Talvez, quem sabe, sejam estes os 'enganos' que o tempo faz às esperanças, de que já falavam os versos das redondilhas de Luís Vaz de Camões.  Quem sabe? 

quinta-feira, 4 de junho de 2015

dentes cravados na carne

Fechada a noite até que o dia volte a ganhar os perdidos veios de cor, por aqui me entrego à melancolia das palavras através das quais me esqueço do tempo e em que fico horas. Depois, já bem mais tarde, quando sinto que deixou de me doer a alma, gosto de deixar alinhavado num pedaço de papel os afazeres que me esperam daqui as umas horas, poucas, quando acordar. Umas vezes a lista é feita de compras, café, leite sem lactose, lâminas, flocos de aveia e guardanapos. Outras vezes, de tarefas por cumprir, pintar os candeeiros do jardim, aspirar os carros, podar as árvores, arrumar a secretária. Há anos que uso esta estratégia como receita infalível para a disciplina. E, podem acreditar, nunca falha. Não há memória de uma destas listas ter sobrevivido mais de 48 horas nos meus bolsos. E não é pelo peso, juro. É porque o meu respeito por elas as trata como se fossem um cão. Sempre a morder, sem me dar descanso.  

quarta-feira, 3 de junho de 2015

segurem-se que está em marcha o carrossel



Irrita-me (muito mesmo) que as pessoas esperem de mim coisas bestiais. Principalmente quando não conseguem (ou não querem) dar-se conta da desilusão que foram. Cheguei a esta idade cheiinho de cicatrizes que me ficaram de outras amizades fachada e de outros géneros de convivências, simplesmente utilitárias. Por isso, nos dias de hoje, imitações do genuíno já não tolero nem as gargalhadas. Tenho-lhes apenas desdém.