Tenho uma
reconhecida dificuldade no trato com certos ‘senhores doutores’, daqueles que
passam receitas (mas só com certos, felizmente muito poucos, diga-se),
sobretudo quando, por comparação, me apercebo que fui educado a ter pelos cães
mais respeito e consideração que aquela que os vejo ter pelas pessoas.
Eu explico.
Faz agora
um ano acolhi o seu ‘problema’ com o interesse, e a importância, com que acolho
todos (ou quase todos), mais ainda por me ter chegado por parte de um amigo,
daqueles já antigos que trago no aconchego do peito. E, como há quem diga
que os amigos dos meus amigos meus amigos são, lá o recebi como tal. Contudo, há
excepções para este axioma como irão poder ver.
Então (prosseguindo o triste relato), percebendo
como estava na minha mão a faculdade de lhe poder poupar uns milhares de euros (sim,
leram bem, disse milhares), tive naquela ocasião o ‘elevado prazer’ de receber
dezenas de telefonemas seus. Pedidos de esclarecimentos, informações de que
carecia, ajudas indispensáveis, pedidos de intervenção, eu sei lá que mais...
Até que, chamando a mim um trabalho que sabia
medonho de exigente, me dispus, eu mesmo, a fazer o que mais ninguém lhe faria.
E assim, decompondo as horas livres na atenção que o seu caso exigia, consegui
levar a bom porto a tal poupança reavida num pagamento a que estaria condenado
por manifesta incapacidade de resolução de um caso difícil que a vida (e uma
generosa herança) lhe oferecera.
Ora, se até aqui nada de mais vos pode parecer
estranho, o que a mim me tira do sério é que, meia dúzia de meses depois da (re)solução
que lhe ofereci (literalmente), o referido espécime, tendo voltado a estar ao
meu lado (ele e a família), por ocasião da comemorações da ‘passagem de ano’, tenha sido incapaz de sequer as boas noites me dar. Isto, é evidente, sem
descurar que, por mais outras duas ou três vezes, também ao meu lado tivesse
estado sem que fosse capaz de um gesto da mais vulgar simpatia. Já nem digo
telefonar-me, pois admito que depois de tantas chamadas que me fez, quando
precisou, tenha certamente perdido o meu número. Coisa que acontece muito a este
tipo de gente.
O outro ‘senhor doutor’, por sinal com quem tenho
uma relação de vizinhança e proximidade que muito jeito lhe dava, era à data
médico de família dos velhotes cá de casa. E assim, depois de um belo dia me
ter abordado, na sala de espera do seu consultório, logo ali tratou de me
expressar o seu desconforto pela má qualidade do trabalho que lhe vinha a ser
prestado pelo profissional a quem pagava. Ora foi dali que nasceu o meu
compromisso de lhe dar ‘uma-vista-de-olhos’ ao seu caso, o que fiz com tal
disponibilidade, e eficácia (passe a imodéstia), que dali veio também a
resultar um relacionamento de dependência, sazonal, relativamente ao
acompanhamento que passou a solicitar-me.
Foi assim que, durante um ano ou dois, sem qualquer
espécie de contrapartida que dali me tenha vindo (fosse de que género fosse,
esclareça-se), e apenas pela amizade que nos ligava o facto de sermos amigos de
infância, lhe dispensei tal ajuda que, inevitavelmente, o levou a ter para
comigo uma mais curta proximidade nas abordagens de aconselhamento que tornou
frequentes e repetidas.
Ora, foi precisamente daí que veio a resultar
aquele que se tornou o desfecho final desta nossa, eficaz e funcional, relação. Eu passo a contar.
Era domingo e, preparando-me eu para sair de casa,
justamente para ir à farmácia de serviço aviar a medicação que aliviasse o
desconforto de um familiar a padecer daquilo que nos pareciam ser vertigens,
eis que me aparece o meu ‘bom amigo’ ao portão da garagem. Uma pequena folha
numa das mãos e com ela o pedido de que o ajudasse a melhor satisfazer o que um
qualquer serviço público oficialmente lhe requeria. E nisto, logo ali,
apercebendo-me do que se tratava, eu me dispus a sossega-lo: deixar estar que
eu trato-te disto, não precisas de te preocupar.
E assim, sumariamente resolvido que ficou mais um
dos seus variados problemas, pensei eu em fazer-lhe aquilo que nunca antes fizera.
– Já agora, que estás aqui, queria pedir-te um
favor, a F… acordou hoje cheia de tonturas e temos estado até agora sem
perceber se é de vertigens que se trata ou apenas de algum sintoma de origem
cervical.
E é então que o ‘senhor doutor’, acertando em cheio
na minha mais inesperada expectativa, me propõe:
- Ah, está bem, está bem, ela que vá lá amanhã à
tarde, ao consultório, que eu vejo isso.
(Estou a imaginar-vos a sorrir pelo que acabam de
ler, é claro.)
Todavia, vocês jamais poderiam sabê-lo, morreu ali,
naquela frase, aquela que foi a minha vasta ingenuidade (e com ela toda a
disponibilidade) com que sempre lhe acolhera as suas múltiplas necessidades.
De tal sorte que, tenho a certeza, a ‘triste figura’
ainda hoje se deve interrogar sobre que estranho bicho me mordera a ponto de
nunca mais, dali em diante, me ter disposto sequer a ouvi-lo.
Foi até assim que, no dia seguinte, manhã cedo, eu
mesmo lhe liguei, ainda a caminho do emprego:
- Olha, estás bom, era só para te dizer que deixei
na tua caixa do correio o papel que onde me deste, é que afinal eu hoje não vou
ter disponibilidade para te resolver o problema e, se não te importas, não vá
aquilo ser urgente, vais lá tu hoje e tratas do assunto.
Sim, podem dizê-lo, são realmente raros os que
escapam ao ‘carisma’ com que lhes retribuo o bem que me fazem. A maioria, como
se percebe, apenas acaba a lamentá-lo. É quanto baste.
Sempre vivi (e penso continuar a fazê-lo) a vida
como quem percorre uma estrada de expectativas (e de sintonias) extraordinárias.
Contudo, mal seria se ao fim de tantos anos de caminho não tivesse já a intuição de
perceber que, se tal não acontece, é porque, afinal, nos enganámos. Metemos por uma estrada para nenhures.
Talvez, quem sabe, sejam estes os 'enganos' que o tempo faz às esperanças, de que já falavam os versos das redondilhas de Luís Vaz de Camões. Quem sabe?