sábado, 31 de maio de 2014

coisas a que os sonhos não se agarram

Passou e já vai fora do meu alcance o tempo em que as quimeras me seduziam. Hoje, dobrada a esquina dessa rua, a linguagem dominante é o prazer esse instrumento de precisão fortíssimo com que cumpro os inevitáveis deveres da paz. 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

IN tolerantes

Sou um cliente fiel da tolerância. Tenho gasto imensa ao longo da vida. Acho até que daí advém um estranho mecanismo de compensação que, por portas e travessas, se tem encarregue de me mostrar  como podemos contemporizar com as pessoas (certas pessoas, o número é reduzido) sem precisar de as enfrentar.  É daí que  nasce toda a minha dificuldade em aceitar o despropósito com que tantas vezes vejo gente a arremessar aos alvos errados. E, como se não bastasse a péssima pontaria, custa-me vê-los deixar a nu as feridas do destempero com que atacam pequenos desacertos da vida (uns profissionais, outros relacionais) ignorando que o que ali estão a revelar é, apenas e só, a sua má formação.  Essa gentinha, tão capaz de assim listar e arremeter contra os defeitos (ou os erros, ou as imperfeições) dos outros, é a mesma que crê estar escondida, por detrás dos sermões que usa como se fossem leques de salão, a miséria existencial em que se esvai a sua vida.  Ainda senão houvesse por aí tanta (mas tanta) coisinha bem mais merecedora dessas  explosões de deslocada violência.  

É por isso que a tolerância, mais do que uma atitude (um modo de estar) é um princípio de vida.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

pelo andar da crise...

Ouvi falar, lá no meio dos campos por onde ando de enxada às costas, que o PS se agita em torno de um militante qualquer, um tal Costa, que dizem querer tomar o poder de assalto. 

As coisas que por aí andam, vejam bem!  

Houve mesmo quem dissesse que já se estão a ultimar poses para encontrar nos estatutos da ‘colectividade’ uma forma de concertar a sucessão com o mínimo de desgaste. 

Ouvi falar em conseguir apoios, contar espingardas,  negociar entendimentos.  Bem, estou mesmo a ver que com isto tudo ainda não será desta que vamos poder ver um socialista eleito.

terça-feira, 27 de maio de 2014

gritar o que ninguém ouve

E às vezes falha-nos o mimo, ocupados, indiferentes, distraídos, às mãos daquela dificuldade crónica em dizer coisas tão simples como ‘obrigado’, ou ‘gosto-te’ ou ‘amo-te muito’, não damos por isso e já valorizamos mais as imperfeições do aquilo que as palavras calam quando devia ser gritado.


É um erro que se paga caro e que mais cedo ou mais tarde terá custos insuportáveis.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

o ruído que torna tudo inaudível


Das muitas razões que me fazem gostar de Viena. Assim numa espécie de predilecção maior que as outras. O facto de se viver naquela grande urbe como quem vive numa aldeia é a maior de todas elas. Das estradas aos transportes, passando pelas pessoas, há em Viena uma quietude de vida que logo nos cativa. Inspiramos fundo e enchemos o peito dos vapores da segurança. Da confiança. Do bem-estar. Delicio-me a olhar os vienenses nas suas rotinas diárias. A vê-los viver. Fazem-no numa tranquilidade contagiante, que nos derrete a crosta do incómodo com que costumamos enfrentar os espaços onde as pessoas se juntam. Onde estamos habituados a ouvi-las. Como por cá (noutros países também, embora menos), onde três ou quatro criaturas juntas resultam num som aparentado com a Feira da Malveira à hora de ponta. Em Viena as surpresas e a admiração espera-nos a cada esquina. Assim, literalmente. Recordo muitas delas. Que encontrei (ou que me encontraram, já não sei) das formas mais inesperadas que vos possa ocorrer. Sempre na mesma calma morna, que me esforço aqui por transmitir. Uma das vezes em que essa realidade me atingiu (caiu-me em cima com uma força brutal), foi na baixa de Viena. Numa das zonas supostamente mais preenchidas de multidão. Às seis da tarde. Em Junho. Passeávamos a pé, a engolir pasmo, quando, subitamente, ao dobrar a esquina de um quarteirão, deparámos com uma pequena praça. Quadrada. Com arcadas fundas. Cheias de esplanadas. Muitas mesmo. Todas repletas de gente. Bastante gente. Fazia um sol absolutamente apetecível. Daquele que alimenta, sabem ? Contudo, o impressionante é que não se ouviam as pessoas. Falavam. Soltavam gargalhadas. Tudo isto sem som. Apenas um suave zumbido. Sem aquela algazarra de fundo a que estamos habituados, principalmente nós, latinos, que tanto cultivamos esta imperfeição de falar uma oitava acima do normal. É por isso que esta capacidade de silêncio dos vienenses me tange os nervos e compõe boa parte do meu confessado deslumbre. Houvesse numa só daquelas esplanadas um grupinho de meia dúzia de portugueses e havia de ser bonito. Só ali se compreende verdadeiramente como vivemos num país de ruído. De todos os ruídos. E interferências também. Muitas. 

domingo, 25 de maio de 2014

o resultado eleitoral

Em nenhum outro sítio como neste nosso rectângulo quanto mais as coisas mudam mais permanecem iguais. É uma fatalidade lusa. 

sábado, 24 de maio de 2014

inquietante verdade

«A grandeza do ser humano, a sua verdadeira riqueza, não está naquilo que se vê, mas naquilo que traz no coração. A grandeza do homem não lhe advém do lugar que ocupa na sociedade, nem no papel que nela desempenha, nem do seu êxito social. Tudo isso pode ser-lhe tirado de um dia para o outro. Tudo isso pode desaparecer num nada de tempo. A grandeza do homem está naquilo que lhe resta precisamente quando tudo o que lhe dava algum brilho exterior, se apaga...»

 ( Escreveu Etty Hillesum em 1941, num dos seus oito cadernos de papel quadriculado, mais tarde classificados como o seu Diário, no campo de concentração de Auschwitz, onde viria a falecer dois anos depois)  




sexta-feira, 23 de maio de 2014

o sonho eleitoral

Às vezes cai-se na ingenuidade de votar influenciado pelas lindas palavras de alguém. Sejam elas do PSD, do PS, ou do PC, ou do Bloco. 

O resultado está aí...  


O que tem mudado?  Basicamente só os nossos direitos e a liberdade de exigirmos mais dos políticos em troca do cada vez menos que recebemos da sua parte.  

Por isso, ÀS URNAS SEUS MORTOS VIVOS, VAMOS LÁ ACRESCENTAR MAIS ENGANO À ILUSÃO DA MUDANÇA. 

quarta-feira, 21 de maio de 2014

auto-estima

Dos poucos (leia-se, escassos) méritos que me esforço para que este blogue possua, um dos que não me canso de destacar, e em que deposito o mais forte empenho, é o de que seja possível, a partir dele, demonstrar como apesar de exíguo (isto é, limitado) o meu domínio do meio literário (e da escrita em particular) consegue atingir níveis de mediocridade verdadeiramente invulgares.


É consabida a importância de sentirmos que nos destacamos (e somos bons) em alguma coisa. Não é?

terça-feira, 20 de maio de 2014

o facebook no seu esplendor

Sucumbindo aos seus demónios, às suas sofridas limitações, e a essa ‘cruz’ que é ser, em tudo o que diz, escreve, ou faz, uma criança num corpo de adulto, o pobre coitado lá vai depositando a céu aberto os mais irreflectidos despautérios. Quando os não faz por manifesta ‘dor de corno’, quase sempre por ter sido deposto de funções para as quais mostrou (e mostra, repetidamente)  não ter um pingo de competência, fá-lo por se achar acima dos demais.  Por se crer um eleito.  Se julgar digno do destaque e duma notoriedade que não lhe deram nem dão.  Abaixo dele, fazendo ‘amen’, um coro de vozes ajuda-o a manter de pé a ilusão de que é alguém. Ou, que o afortunado golpe do destino (mas não só) que ali o arrumou, o fez por mérito, não por esmola. Mas, não foi. E assim, cheio de si, no seu tom de badalo de relógio, muito mais aparência do que conhecimento, lá vai o infeliz tentando equilibrar-se no pedestal de cagança que usa para gritar a sua verdadeira natureza de intruja. Fá-lo numa escrita prenhe de ressentimento, a mostrar toda a sua impreparação para a vida. Mais que isso, a revelar desconhecer que há cargos que depois de  os ocuparmos ou nos enaltecem ou nos enxovalham. Ele escolheu a última opção.



segunda-feira, 19 de maio de 2014

um dó li tá *

 * Crónica publicada na VISÃO 1078, de 31 de Outubro)

Perguntam-me muitas vezes por que motivo nunca falo do governo nestas crónicas e a pergunta surpreende-me sempre. Qual governo? É que não existe governo nenhum. Existe um bando de meninos, a quem os pais vestiram casaco como para um baptizado ou um casamento. Claro que as crianças lhes acrescentaram um pin na lapela, porque é giro

- Eh pá embora usar um pin?

que representa a bandeira nacional como podia representar o Rato Mickey

- Embora pôr o Rato Mickey?

mas um deles lembrou-se do Senhor Scolari que convenceu os portugueses a encherem tudo de bandeiras, sugeriu

- Mete-se antes a bandeira como o Obama

e, por estarem a brincar às pessoas crescidas e as play-stations virem da América, resolveram-se pela bandeirinha e aí andam, todos contentes, que engraçado, a mandarem na gente

- Agora mandamos em vocês durante quatro anos, está bem?

depois de prometerem que, no fim dos quatro anos, comem a sopa toda e estudam um bocadinho em lugar de verem os Simpsons. No meio dos meninos há um tio idoso, manifestamente diminuído, que as famílias dos meninos pediram que levassem com eles, a fim de não passar o tempo a maçar as pessoas nos bancos, de modo que o tio idoso, também de pin

- Ponha que é curtido, tio

para ali anda a fazer patetices e a dizer asneiras acerca de Angola, que os meninos acham divertidas e os adultos, os tontos, idiotas. Que mal faz? Isto é tudo a fazer de conta.
Esta criançada é curiosa. Ensinaram-me que as pessoas não devem ser criticadas pelos nomes ou pelo aspecto físico mas os meninos exageram, e eu não sei se os nomes que usam são verdadeiros: existe um Aguiar Branco e um Poiares Maduro. Porque não juntar-lhes um Colares Tinto ou um Mateus Rosé? É que tenho a impressão de estar num jogo de índios e menos vinho não lhes fazia mal. No lugar deles arranjava outros pseudónimos: Touro Sentado, Nuvem Vermelha, Cavalo Louco. Também é giro, também é americano, pá, e, sinceramente, tanto álcool no jardim escola preocupa-me. A ASAE devia andar de olho na venda de espirituosas a menores. Outra coisa que me preocupa é a ignorância da língua portuguesa nos colégios. Desconhecem o significado de palavras como irrevogável. Irrevogável até compreendo, uma coisa torcida, e a gente conhece o amor dos pequerruchos pelos termos difíceis, coitadinhos, não têm culpa, mas quando, na Assembleia, um deles declarou

- Não pretendo esconder nem ocultar

apesar da palermice me enternecer alarmou-me um nadita, mau grado compreender que o termo sinónimo seja complicado para alminhas tão tenras. Espíritos tortuosos ou manifestamente mal formados insinuam, por pura maldade, que os garotos mentem muito, o que é injusto e cruel. Eles, por inevitável ingenuidade, não mentem nem faltam às promessas que fazem: temos de levar em conta a idade e o facto da estrutura mental não estar ainda formada, e entender que mudar constantemente de discurso, desdizer-se, aldrabar, não possui, na infância, um significado grave. A irrealidade faz parte dos cérebros em evolução e, com o tempo, hão-de tornar-se pessoas responsáveis: não podemos exigir-lhes que o sejam já, é necessário ser tolerante com os pequerruchos, afagá-los, perdoar-lhes. Merecem carinho, não crítica, uma festa na cabecinha do garoto que faz de primeiro-ministro, outra na menina que eles escolheram para as Finanças e por aí fora. Não é com dureza desnecessária e espírito exageradamente rígido que os educamos. No fundo limitam-se a obedecer a uns senhores estrangeiros, no fundo, tão amorosos, que mal fazem eles para além de empobrecerem a gente, tirarem-nos o emprego, estrangularem-nos, desrespeitarem-nos, trazerem-nos fominha, destruírem-nos? São miúdos queridos, cheios de boa vontade, qual o motivo de os não deixarmos estragar tudo à martelada? Somos demasiado severos com a infância, enervam-nos os impetuosos que correm no meio das mesas dos restaurantes, aos gritos, achamos que incomodam os clientes, a nossa impaciência é deslocada. Por trás deles há pessoas crescidas a orientarem-nos, a quem tentam agradar como podem à custa daqueles que não podem. Os portugueses, e é com mágoa que escrevo isto, têm sido injustos com a infância. Deixem-nos estragar, deixem-nos multiplicar argoladas, deixem-nos não falar verdade: faz parte da aprendizagem das mulheres e homens de amanhã. Sigam o exemplo do Senhor Presidente da República que paternalmente os protege, não do senhor Ex-Presidente da República, Mário Soares, que de forma tão violenta os ataca e, se vos sobrar algum dinheiro, carreguem-lhes os telemóveis para eles falarem uns com os outros acerca da melhor forma de nos deixarem de tanga. Qual o problema se há tanto sol neste País, mesmo que não esteja lá muito certo de o não haverem oferecido aos alemães? E, de pin no casaco que nos fanaram, isto é, de pin cravado na pele

(ao princípio dói um bocadinho, a seguir passa)

encorajemos estes minúsculos heróis com um beijinho, cheio de ternura, nas testazitas inocentes.

domingo, 18 de maio de 2014

da megalomania à vulgaridade

Antes de aqui chegar passei ali pelos ‘ciberespaços’ de uns quantos ‘verbo-dotados’ que sigo diariamente. O  que me vale é que encontro quase sempre,  no soberbo de um deles (o do costume),  a contenção, o comedimento, o apontar cirúrgico, que o devido respeito pela palavra escrita  impõe. Depois há os outros, três ou quatro, que se vestem de variadas e  garridas cores literárias, mas que não se libertam do ‘mais-do-mesmo’ habitual. Mais notoriedade, menos banalidade, encostados (ou não) às editoras que os promovem (questões negociais), parecem sentir-se forçados a fazer prova de vida da importância que não lhes dão. Sinto-me  ofendido, é claro. Usam naquilo um comportar que me ficaria bem a mim, não a eles. Eu, que por mais que tente não me achego nem ao conceito de pobre imitador. Fico surpreso de os ver  assim, a gritar alto a qualidade do que escrevem,   fazendo-o somente para conseguirem um vago vislumbre de visibilidade. Como se cumprissem uma obrigação. Um castigo. Se não deles, dos que os leiam em tal desconcerto. 

Faz-me pena vê-los ali,  a desgastar  horas, a consumir vulgaridades que não mereciam mais que 5 minutos.  Como diz a Agustina (Bessa Luís), não basta ter talento, é preciso ter licença para isso. 

sexta-feira, 16 de maio de 2014

furto


Contrariando o que em mim é habitual, quando a única coisa que aqui consigo roubar é tempo ao sono, hoje, abdicando desse incómodo,  de quem se sente  como se furtasse  comida aos porcos, consegui encontrar algo para surripiar. Coisa inédita num ambiente destes, eu sei, onde já tudo foi roubado . Até os sonhos.  Com efeito, ao fim de tantos anos de busca intensa,  consegui finalmente encontrar  algo que me pareceu  não ficar mal no currículo de um larápio. Foi assim que, fazendo mão baixa ao produto em causa, o saquei sem mais daquelas e comigo o trouxe. Depois, passei-lhe o pano no pó, avivei-lhe a luz, dei-lhe um arzinho na saturação e, ei-lo aí. À vista de todos.  Tão seguro eu me acho da impunidade do gesto que nem me escondi para o consumar. Foi assim mesmo. Mal feito e pior confessado. Gritando boa fé. Há quem diga que o roubo só é grave quando não melhora o produto rapinado. Não foi o caso. Meu, aqui, só o esforço para não estragar. Oxalá tenha sido capaz.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

pintura sobre tela

A artista exibe o seu talento. Porém, desconhecendo como é tão ridícula, mas tão ridícula mesmo,  a sua treva (leia-se, cegueira), lá permite que seja a partir dela que o ridículo, e só ele, ali ganhe foros de importantíssima dimensão.   


Pintar às escuras é o que dá.   

terça-feira, 13 de maio de 2014

justificando assim o inconseguimento

Hoje sinto-me exaurido, como as pilhas. Embora neste caso o que eu tenha  esgotado seja mais a inteligência. Ainda pensei em vir aqui escrever tomando por assunto a falta de assunto, mas… Não consigo. Tenho o cansaço escrito na cara. Tudo o que aqui escreva hoje, amanhã irá parecer-me alheio quando o reler. Nestas alturas até as narrações fáceis se mostram complicadas demais para o meu entorpecido entendimento. Por isso, vou ler uma folha ou duas e recolher-me. Creio que já antes vos disse que a leitura é uma componente do meu adormecimento sem a qual fico incompleto. Procurar o sono através dela é para mim uma espécie de caminho sem retorno. Nunca falha. Nem preciso da bolacha da insónias nem da cápsula dos nervos. É tiro e queda. Fico-me por aqui, portanto. Durmam bem e não se esqueçam de apagar as luzes à saída. E, já agora, os últimos que paguem a conta quando a vierem cobrar. Fim da linha.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

a paz agora transformada em 'para sempre'

Não dá para explicar. Ninguém (se calhar, ninguém mesmo) entenderia do que falo. São dias e dias a sucederem-se, a eito, uns a seguir aos outros, em que os acontecimentos me induzem num estado de felicidade único. Longe do esgoto a céu aberto das imitações e das cópias de má qualidade em que tive de engolfar-me para aqui chegar. O único préstimo que lhes encontro é o de terem servido de via de acesso a esta paz. É também o de me terem mostrado o que há de pior na espécie humana por forma a não voltar a ter de com essa miséria me cruzar. Agora sim, já dá para explicar.

domingo, 11 de maio de 2014

soturna e triste

Nos seus olhos há um brilho triste e húmido. Nos lábios aquilo que se cuida tenham sido sobras de palavras esmorecidas. Do rosto escorre-lhe sofrimento sob a forma duma tristeza que não passa. Raramente a vi sorrir. As únicas emoções que lhe retenho são, quase todas, quase sempre, de assanho. Arrelias. Contrariedades.  Apoquentações.  Até hoje, pouco mais lhe encheu o espaço oco em que a tenho visto viver. Até as palavras, as poucas que me lembro de lhe ter ouvido, me pareceram poupadas. Secas. Contidas.  Resignadas a um sofrido pesar de que não se libertam.  Nem mesmo há dias, quando a vi passear de mão dada com o marido, no shopping, e me pareceu ser magoada a expressão que levava. Cruzámo-nos três ou quatro vezes. Ora eu entrando em lojas de onde eles saiam, ora saindo daquelas onde entravam. Mas, nem uma só vez os vi trocar um som que fosse. Uma gentileza leve. Um aceno de olhares. Uma intimidade cúmplice. Nada. Como se nada fosse tudo o que tivessem a partilhar. Nada não, havia o silêncio,  e esse era bem audível nos intervalos em que respiravam. O resto, todo o resto, certamente já o tinham dito há muito. Ou então, quem sabe, talvez o toque das mãos fosse o que de mais intenso tinham a compartir. O que melhor os fazia esquecer a condição de infelizes. Um vazio já antigo, daqueles que, aos poucos, ocupa tudo o que houve de profundo e que, perdido, já não lhes dói.  

sábado, 10 de maio de 2014

admiração



Tenho uma confessa admiração por Sir Mick Jagger, prestes a completar 71 anos. Eu diria que é assim uma benquerença proporcional à embirração que tenho por alguns músicos (?!) portugueses, tristes todos eles, que o tentam imitar. Imitar como fenómeno de longevidade, é óbvio.  A esses uso-os como referência para que não esqueça nunca como é patético ver um velho a querer parecer mais novo.  

Já agora, e posto que estou em modo de confissão,  deixem que vos diga que também tenho muita (quase igual) afeição pelo Anton Corbijn (é dele a foto do MJ).

sexta-feira, 9 de maio de 2014

céus!


O tempo que eu levei até perceber que os minuetes só divertem os que os sabem dançar.  

Ao que eu podia ter sido poupado se o tivesse sabido antes. Francamente.  

quinta-feira, 8 de maio de 2014

que dor é essa que nunca passa?

Sangra-me a alma este correr dos dias, assim. Uma espécie de mutilação concertada, que me absorve a paciência ao limite do suportável. Por desatenção ou cegueira (vá lá saber-se) daqueles com quem me relaciono, o meu quotidiano gira à volta dum mundo queixoso. Gente que se arrasta até mim apenas para me conceder esse privilégio das suas mundanas chatices. Das suas repetidas lamúrias. Da lamechice do seu constante pedir. Ou da tentação do seu imutável reclamar. Passe a descortesia e o desdém eu creio que as pessoas já nem se dão conta. Há muito que esta conduta se tornou a matriz do seu relacionamento humano com os outros.  Poucas são as que o percebem. Uma, ou duas, talvez. Não são mais as que me procuram fora dessa linguagem uniforme  do queixume e do lamento.  Focadas nas suas cicatrizes, centradas nos seus umbigos elas comportam-se como lobos ávidos de quem os escute e querem lá saber que me sinta usado. O que sinto é-lhes indiferente.  Para elas a amizade é um serviço. Os seus problemas relatados com recurso a um alfabeto de dor constituem o horizonte do tempo. De todos os tempos. É assim que os meus dias se sucedem. As mais das vezes a estreitíssima latitude da minha missão terapêutica é  ouvir uivos de dor. De dores. E mesmo quando tal comportamento pede mais a minha piedade do que a minha ira ou indignação, o que sinto é desconforto e medo de não conseguir resistir. Afinal, ter pena de alguém é o mais reles dos sentimentos. É por isso que há momentos em que para mim escrever é apenas uma forma de minimizar a angústia dessa dor de detalhe e miséria.

(À data - 24.04.2012 - assim escrito, parece-me isto a sombra de um passado que a ressaca diluiu em amnésia. É espantoso o efeito de um mês longe das labaredas do inferno. Nada mais volta a ser o negrume que foi.) 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

dei conta que...

O mês de maio é de todos aquele em que tenho mais amigos. Alguns são inevitáveis, por respeito que lhes devo. Contas antigas a que jamais serei paz de me furtar. Outros nem os conheço. Olho-os com uma estranheza que não parece ser suficiente. Nem assim  desistem.  O melhor é não ligar. Finjo eu não ter percebido que percebi que eles perceberam. Assim como assim, tudo é irreal neste mundo e, para a semana já passou. Já terão ido estes. Voltarei a ter os que tinha em fevereiro e março. Dos mais, já nem sequer darei conta da sua existência. Nem da ausência.  Para a semana será outra vez Janeiro. Tenho a certeza.  

terça-feira, 6 de maio de 2014

presos ao passado

(Ainda sobre o post projecto (pro bono), como era de prever.) 

Pode o 'passado' das pessoas comprometer as louváveis iniciativas em que um belo dia se envolvem e a que surgem angelicalmente ligados?

Terrível pergunta.


Ambições à parte o que eu acho é que cronologicamente chamamos-lhe passado mas depressa acabamos por perceber que ele não é mais do que eternidade. Morre connosco. Pois.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

filho a recordar a mãe no dia em que faria 90 anos

Como se enche um vazio de seis anos? 

Com memórias, recordações, fragmentos de lembranças comuns que nada remove do lugar que, abandonado pelo tempo, deixaste vazio. 

domingo, 4 de maio de 2014

máscara

Sou um admirador confesso da tua máscara de pessoa boa. Comecei até por achar que a usavas como fuga ao excesso de olhar dos outros sobre ti. Percebi depois que não. O propósito é apenas o de ocultar a verdade. As verdades. Desviar a curiosidade alheia dessa trajectória a que chamas vida.  Porém, bem sabes, é fatal e implacável o julgamento quando se brilha assim, como um farol em plena escuridão. A metáfora, convenhamos, assenta-te a matar.  Mas, deixa lá, não te indignes, não é tão mau assim. Mau é outra coisa. Mau é algo melhor que isso que mostras.

sábado, 3 de maio de 2014

por detrás das palavras

Há aqui dentro, na minha cabeça, um espaço minúsculo, entre o aneurisma cerebral em formação e o Alzheimer a instalar-se, onde se alojam as ideias das coisas que aqui escrevo. Assim, e como tiveram já ensejo de comprovar, porque não são nada atraentes os bastidores da minha escrita, espero que, doravante, me situem nessa área que fica entre o meditativo e o parvo. Mais para perto do último, bem se vê. Lamento a desilusão. 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

peditório

Acho um nojo essa coisa de dar em peditórios que nos colam coisas no peito. Como um rótulo. Dar dispensa esse gesto soez da propaganda. Do mostrar que dei. Essa pompa pequenina. Quando o donativo se veste de contrapartida o acto tende ao alarde. O proveito torna-o ordinário. Não sei porquê mas cada vez mais sinto que já não tenho tempo a perder com vaidades e ostentações. Deve ser porque há quem só viva delas. E delas se alimente.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

dissimulação s.f.f.

Perdoe-se-me o aparte irónico  mas não sou lá grande espingarda em matéria de sorrisos vazios. Eu bem procuro que não se notem, é certo, mas nem assim consigo evitar que me saiam entre o fingido e a imitação. Especialmente quando por razões que não interessa agora detalhar alguém faz questão de me oferecer uma importância que não tenho. Esse, então, é um domínio em que o acto de esconder não me garante nunca aquela circunstancial e esperada polida elegância. Nem quando é fácil e me aguento, contido e direitinho, muito menos quando é difícil e fico todo entrevadinho, incapaz de cínicos gestos de delicadeza e agradecimento. É que, dívidas e dependências não as tenho, e, para submissões já é tarde. O que tenho, e de sobra por sinal, é a tranquila certeza de que cheguei a esta idade sem sonhos para alimentar ou ilusões por criar.