sábado, 31 de janeiro de 2015

virgínia

Há uns dias que ando tentado a voltar a Virgínia Woolf. Àqueles diálogos em que me desconcerta com o brilhantismo e concisão das suas ideias. O pior é que ela pertence ao abrangente grupo das minhas preferências literárias pelas quais depois de passar fico que tempos sem mão. Sem mão, sem dedos, sem pulso. Sem tudo. São daquele género de autores que castram como tesouras afiadas. Lê-los é ficar impotente. Um mês ou dois, pelo menos. Depois, só à custa de umas quantas noites ali pelos bares de alterne da Duque de Loulé, com a ajuda (terapêutica, bem se vê) dalgumas das meninas brasileiras mais competentes a ressuscitar mortos, é que lá volto a conseguir que a imaginação me dê corpo e tom à escrita. Ou isso ou uma valente ‘buba’ com vinho tinto marado, que é também muito eficaz passado que esteja o período de etílica euforia e a correspondente ressaca, de três dias. 

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

ledo engano

A minha parca inteligência não é capaz de atingir porque é que são cada vez mais aqueles que, precisando de nós, acham que simulando uma cumplicidade que não temos (nem nunca tivemos), melhor conseguem o que querem. É uma coisa do domínio do engano puro e simples. Alguns, pobres diabos, tão incomodados se sentem que é vê-los a amuar como crianças a quem se negou um brinquedo. No entanto, a ideia com que fico é que confundir amizade com ‘gajos porreiros’ é como confundir as semelhanças tão diferentes do querer com o desejar. 

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

atitude crítica (todo o prazer tem ressaca)

Fazendo um percurso destes é inevitável que se colham alguns reparos. Tenho para com todos a mesma postura. De quem olha a realidade com lucidez e, acima de tudo, conhece (bem) as suas limitações.


É por isso, ainda que no caso se trate apenas de brincar com palavras,  perfeitamente ciente do óbvio que é haver quem o faça melhor do que eu, que procuro nos confins da minha mais funda consciência a justificação que me ocorre: se te dá prazer, mesmo não o sabendo fazer bem, limita-te a fazer o que sabes.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

arrojo, audácia, desprezo pela vida

Da mesma maneira que seria capaz de, um a um, enunciar os livros que serviram de alicerce para a minha vida, também sou capaz de vos dizer que esta semana, na FNAC, enchi-me de coragem (arrojo, audácia, desprezo pela vida) e peguei num livro do José Rodrigues dos Santos. Uma folha. Duas folhas. Três folhas. E…


…foi o suficiente para confirmar que não estava a ter um pesadelo. Ufff!  

sábado, 24 de janeiro de 2015

a ilusão é o maior de todos os prazeres *

Tenho ideia de que quanto mais acreditamos nas coisas mais elas se revelam ilusórias. 


(O título deste post é do Senhor Oscar Wilde. O resto sou eu a pensar.)

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

substituta legal

Ligou como se quisesse fazer-me um relato relevante. Mas não era isso que queria, depressa deixou perceber. Ainda assim, como quem quer criar ambiente, contou-me, por duas vezes, a mesma coisa. Uma parvoíce qualquer que alguém pôs na minha boca. Finalmente, respirando fundo, lá teve coragem de dizer ao que vinha:

-Já leu o orçamento?

Que não, disse-lhe eu esperançado que ficasse por ali a sua tentativa. No entanto, sem desistir, voltou em força. Falou-me das muitas ‘alterações’ que o preceito trazia, ainda que sem ter conseguido acertar numa só que fosse. Talvez por isso, mesmo já não sendo nova para mim toda aquela vasta ignorância, senti-me  condoído com a revelada dificuldade de interpretação.

Às tantas, cansado por tanto desconhecimento, até eu senti vontade de lhe dizer que afinal tinha mesmo lido a dita disposição legislativa. Mais, que devíamos ambos tê-la lido, ainda que versões diferentes, a avaliar pelos disparates que acabava de lhe ouvir.

Resisti, contudo, e não lhe disse nada. Prometi apenas que uns dias depois, logo que o lesse, lhe telefonava para voltarmos a falar. Então, olhando pelo retrovisor, certifiquei-me que o meu neto não me tinha ouvido mentir e continuava distraído, ainda a ver a o livro recém comprado.

Por fim, fechando os olhos por breves segundos, voltei a por o carro a trabalhar ao mesmo tempo que pensava no infindo desacerto que cabe numa só palavra – substituição.

É sempre uma surpresa perceber que a há casos em que a burrice consegue ser quase inimputável.  E, pior que isso, é paga. 

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

misérias humanas

Nos tempos que correm miséria já não é sinónimo de pobreza ou de necessidades. De falta de recursos económicos ou de subsistência.

Miséria é hoje a triste figura que por aí se vê fazer àquela gente sem existência quotidiana, sem entusiasmo de viver, que vai aos facebooks de certos trafulhas convicta que comentar ou gostar de tudo o que os parvos lá coloquem tem outro nome que não seja exibicionismo ignorante.   

Pobres bacocos esses, talvez julgando que não se perceba que, quando a moldura é um tal comportamento o quadro visível é o do seu imenso talento para lamber botas. Como se formassem um coro de unidos num mesmo propósito – partilhar misérias. Isso e também mostrar a sua irremediável falta de espinha dorsal. Coitados. 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

matrona

Não o sabendo assumir nem lhe sendo suficiente o corpo disforme com que os antidepressivos a moldaram, ela insiste em exibir as fotos da sua já longínqua adolescência. Quase todas ao lado das 'vedetas' de que foi manager, ou algo assim, parecido com isso. Porém, agora, talvez esquecida que não há retorno para a beleza quando se torna feia, apela ao nosso esquecimento, vestindo nessas fotos desbotadas pela idade os números abaixo que a gordura não alargou.  E, certamente achando que não é pouco, quando fala da vida que vive, diz que tem curtido bué, que tem gramado umas cenas que tem controlado e que tem sido fixe atinar com o pessoal com quem tem fumado umas ganzas. É assim que passa o tempo, ignorando os seus agentes implacáveis, impante e rancorosa, evitando os ventos cuja direcção nunca soube interpretar.  

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

meu rico país!

E eis que, em pleno século XXI, quem se debruce à nossa escancarada janela e se disponha a espreitar para dentro deste país, depressa irá perceber que nunca antes uma democracia foi um jogo tão viciado e tão imoral. E logo nós que já fomos tão bons nos Jogos Sem Fronteiras. Louvado seja!

Enfim! Um país não é apenas aquilo que é, mas também o que parece aos olhos dos outros.

domingo, 18 de janeiro de 2015

um arrepio de solidão

É na flor dos seus sessenta anos que aqui a trago. Vive só, sem rendimentos de qualquer natureza que não sejam os magros trocos que sobram da pensão da mãe. Isto, é claro, depois de pago o lar onde a velhinha senhora vegeta há anos. É, pois, entre a sua humilde casa e o lar que acolhe a mãe, numa acamada e profunda dependência, que decorre a sua vida. Acorda só e é só que se há-de deitar. Tudo o mais é esse nada que extrai da solidão em que vive. As tardes passadas no lar à cabeceira da mãe a quem dá o almoço, e até o lanche, às vezes. Depois, de volta a casa, faz de metro ou a pé o trajecto entre os dois locais em que acontece o seu viver. Um brilho triste e húmido a cobrir-lhe os olhos ao mesmo tempo que na sua frente um pombo esvoaça sem rumo. Sinais de uma esperança onde nada acontece, a extinguir como chama soprada pelo vento (que tudo leva) os momentos do dia que lhe faltam viver, entre os quais já só cabe vazio. Já em casa, um telefonema a uma amiga que lhe assegure duas horas de conversa. (Quando o telefone toca e lhe percebo a voz é um grito que pede que o escutemos aquilo que melhor se ouve.) Depois, na companhia das novelas da noite, o esperar que a dor do isolamento lhe entorpeça mais a mente que o corpo e a leva à reconfortante modorra do sono.
Lá para trás, no que foram uns esparsos riscos a cores com que a vida  lhe coloriu uns meses de pobreza afectiva, ficou um namoro com um canalha que tantas vezes a abandonou e a desprezou quantas as que a procurava semanas depois. Pedindo desculpa, dizendo-se arrependido e encurtando tempo para o dia em que, de novo, havia de a deixar. Assim, sem mais. Quer dizer, sem mais não: trocando-a por outra. Que é como diz, dando à história que vos relato o desfecho a que já todos estamos habituados. Ela só, sem ninguém. Ele já envolvido na nova relação, a continuar a tentar atraí-la para vértice do triângulo que certamente lhe agradaria formar. E é daqui, desta triste narrativa que, talvez por acaso ou por outras ocultas razões, sempre se sabe bem como começam mas nunca se imaginam como acabam, que todos os santos dias parte esta alma para mais um dia. Umas vezes em busca de companhia e outras apenas para fugir à solidão. 
Contudo, o que a mim me preocupa (com a razão que espero que o futuro não se encarregue de confirmar) é a quantidade de vezes que já lhe ouvi dizer: só estou à espera que ela morra. 

sábado, 17 de janeiro de 2015

realidade(s)

Atrás de ti virá quem melhor de ti fará.


(Raios! Eu acho que o ditado não era assim, mas, vá lá saber-se porquê, há sítios onde estão sempre a mudar as realidades. É uma coisa…)

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

da escassez de horizontes à rotina feita de plágios

Impressiona que nunca antes tanta gente tenha disposto de tais condições para, aqui chegados, formarem opinião e dela fazerem o melhor dos usos. No entanto, é o que se sabe. A realidade não muda. Ler é costume que se perdeu. Colectar informação é hábito que não se alcança. Pior mesmo só deixar perceber que fruindo deste ambiente que é a net, essa fonte de conhecimento (a leitura) tenha sido banida de tantas vidas. E, como se não bastasse tal tristeza, mais estranho ainda é concluir que isso não acanha a renovada condição dalguns palermas que por aqui andam, sem outra preocupação que não seja o comezinho copy paste (copiar e colar).

Ele é notícias, estudos, análises, pareceres, apreciações ou outros considerandos. Há de tudo por estas bandas, na mais acessível das disponibilidades. É só querer. Trazer ideias feitas não é mal que aqui não colha resolução. Consultar alguns dos que também por cá as emitem é, em regra, suficiente para que assim possamos validar as nossas. Testar-lhes a força. Submetê-las à dúvida ou ao engano. E feito isto, então sim, bem se poderá dizer: esta opinião advém de um registo de interesses que tomei por racional - este, aquele e aqueloutro.

Contudo, aquilo a que mais se assiste é precisamente o contrário. Num autismo desfasado a que não chamo indiferença nem eu sei bem porquê, quem aqui chega logo trata de dizer de si. Uns balbuciam umas ideias nascidas do seu ilustrado vazio. Outros, de tanto e tão desesperadamente quererem fazer parte desta nova realidade, limitam-se a impiedosos disparos de distanciada pontaria que pouco mais atingem do que a lama em que espezinham. A maioria copia e cola. Fá-lo sem rasgo. Sem nada acrescentar ao espaço que ocupa e assim consome. (Sim, eu sei que há quem diga que o plágio só é grave quando não melhora o produto copiado. Mas, que diabo, para tudo há limites. Não há?)

Nos tempos que correm aquilo que realmente impressiona é como a tantos escape que qualquer agitador (ou provocador, ou comentador ou seja lá o que queiram chamar-lhe) que se preze sempre deva propor alternativa, ao questionar aquilo que o indigna. Ou, sendo político, mesmo não sabendo do que fala, como depressa se percebe quando o fazem, não há como oferecer à evidência do desconhecimento uma boa pitada de esclarecida informação.

É que, abarcando todos estes interesses, já bem bastam as certezas que os estudos sociais nos põem na frente dos olhinhos. Dizem elas que estamos todos a ficar mais estúpidos, e mais sós, por causa dos computadores e da internet.


Oh que caraças! 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

amigos das horas boas

Houve um tempo em que achei que talvez não voltasse a encontrar o caminho de volta à paz que tanto ansiava. Sentia-me sitiado por interesses. Vivia rodeado de falsos amigos. Daqueles que só apareciam quando precisavam, ou para almoços e jantares de favor. Não tenho memória de ter visto algum deles nas horas más que até hoje tive de enfrentar. Então, há quase três anos, numa longa noite de Inverno, adormeci a congeminar a   decisão que haveria de mudar a minha vida. De tal sorte que, às oito da manhã do dia seguinte, cem quilómetros depois, ela estava definitivamente tomada. Só os que me eram íntimos souberam, informados um a um, com o pedido de que nada relevassem durante os dois anos que levaria a pô-la em prática. Assim foi, de facto. E, tal como previsto, quando finalmente a alcancei, há cerca de um ano, uns quantos daqueles me vieram questionar: por que razão é que nunca lhes dissera? A muitos nem resposta dei, confesso. A outros, pouquíssimos, ainda me dei ao trabalho de lhes explicar que estavam enganados. Não tinha sido eu que não lhes dissera, tinham sido eles que nunca quiseram saber. E foi daí, do semblante carregado de embaraço, tal como do rubor da face e do nó que lhes persenti na garganta, que eu colhi, então, o prémio maior – vê-los assim. Pequeninos, a digerir essa espécie de mensagem (de dolorosa verdade) que acabava de lhes sair no ‘fortune cookie’ do almoço no restaurante chinês. Hoje, salvo algumas (raras) excepções, já são residuais os que ainda ousam por os olhinhos fora do lodo, certamente à espera da imprevidência de me verem devolver-lhes os ridículos toques que me dão pelo facebook, ou de encontrarem eco para os emails carregados de banalidade com que tentam arrancar-me uma reacção. Hoje, um ano depois da lição que mediou este meu percurso até aqui, posso finalmente dizê-lo – alcancei a paz. Muitos ou poucos, os amigos que sobreviveram possuem (todos eles) o selo de garantia de terem passada no crivo (uma espécie de pré-inspecção) em que ficaram retidos os outros, os tais das horas boas. Por isso, ciente de que seria injusto terminar isto sem vos dizer obrigado, deixo-vos, a todos vós, o meu reconhecido (e abraçado) agradecimento. 

sábado, 10 de janeiro de 2015

gato sapato

Dez dias passados e isto. Para lá, para cá, o Janeiro monótono como um pêndulo, apostado em ser como o Dezembro e os outros que o antecederam. Eu, porém, determinado, faço dele o que a vida tem vindo a fazer de mim, de há uns meses a esta parte – gato sapato. 

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

mas afinal de que é esta gente gosta realmente, hein?


O ser humano é muito pouco sensato. Daí que tanto seja capaz de mostrar o seu apreço por aspectos fáceis de admirar, tais como um dia de sol, ou uma noite de luar, como por outros de impossível agrado: alguém que luta contra a doença, um idoso que morre de frio, as campanhas dos tetraplégicos. Enfim, um nunca mais acabar de possibilidades.  

É assim que, passeando por aqui, por entre bocejos que se repetem dia após dia, deparo sempre (sublinho o ‘sempre’) com os mesmos likes. Morreu fulano de tal, RIP’s e likes com fartura; caiu um avião não sei onde, mais um monte de likes; a criancinha desaparecida, vá mais uma molhada deles; o cão perdido que os donos procuram, outros tantos gostos.

Há likes tão (ou mais) imprevisíveis como decepções. O pior é que, a coberto de tão falsos critérios e perante tanta subjectividade, o resultado final soa ainda mais fingido. E, como se não bastasse, piora ainda quando pelo meio daqueles se deviam deixar, e não deixam, uns molhos deles nas causas que realmente os mereciam.

É de tal maneira que se chega a uma altura em que pertinazmente  temos de perguntar: mas afinal de que é esta gente gosta realmente, hein?

Portanto, com isto, a conclusão lógica é que acabo sempre a comparar estas minhas digressões, por aqui, com os passeios que tenho por hábito dar nos espaços públicos cá do bairro. Onde, por muito que me incomodem os incontáveis montinhos de estratos de fezes com que os canídeos fazem questão de adubar a relva dos jardins, não me adianta protestar com os seus donos quando os vejo aliviar as trelas para permitir que os pobres animais os façam.

É  que, num caso como no outro,  eu sei (e eles se calhar também), é inteiramente impossível pegar num pedaço de merda pelo lado limpo. 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

indiferenças que o tempo traz consigo

Depois de ter exercido uma profissão repleta de fantasmas bastaram-me uns meses nesta ilha de silêncio e indiferença onde me refugiei, sem conviver com essa gente que finge que não está a fingir, que entra e sai das nossas vidas em função das suas precisões, especializados em relações (e só nessas) em que o retorno lhes possa ser útil, para perceber quem possui realmente a importância que lhe dou (ou dei, ou dava, deixo à escolha).

É assim, feliz (digo-o sem cultivar ressentimentos), longe desse território de fronteira entre a lucidez e a ilusão, que eu hoje me movo, apenas e só, no meio dos que comigo partilham mais do que pedem.


Claro que, aqueles que por força desta alteração vão passar (muitos já passaram) a ter de bater a outras portas, não devem estranhar quando perceberem que por estes lados se fechou o caminho do oportunismo. 

sábado, 3 de janeiro de 2015

perguntas sem resposta (todas)

Que mania esta da falsificação. De querer disfarçar as nódoas fazendo tão triste figura. Que mania esta de pensar que o alcanço quando, por breves instantes, o melhor que consigo é iludir a fadiga. Sim, que quererei eu esconder quando mesmo em silêncio falam por mim as palavras que aqui deixo numa berraria de ensurdecer? És capaz de me dizer? Que espero eu destas horas e horas, lentas e arrastadas, em busca do meu destino? Não me dizes? Quem me traz de volta o tempo que encurto aos prazeres da vida e que mais e mais me aproxima do pequeno final que é a inutilidade da morte? Já pensaste nisso?  

E eu ali fiquei, naquilo, a pensar, sem que nenhuma resposta me satisfizesse por inteiro. A confirmar nas palavras que escrevo que este não é quem eu penso ser, não é quem eu queria que fosse.


Afinal, já não sei quem foi que disse, comprova-se, de facto, a semântica é como a cosmética, pode disfarçar um problema mas não o trata. 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

ontem futuro, hoje passado

E pensar que ainda ontem acabei de virar a folha de um calendário de argolas que demorou doze meses a virar, quando, afinal, a cada segundo que passa o tempo se torna ruínas de um presente já vivido a que chamamos passado. 

Enfim, que fazer se todo o futuro está dependente do agora?! 

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

exibicionistas da bondade *

Não me devem os meus progenitores ter talhado para ser a boa pessoa que vejo noutros. Educado na fé católica, onde fiz muito para lá do percurso próprio então exigido aos meus pares - baptismo, catequese, todas as comunhões e mais algumas, catequista e até sacristão – veio a ser pela mão hábil de um dos padres a cujo ministério ajudei que, mais tarde, vim a ser orientado para seguir uma vida menos exposta às ‘dúvidas’ que já naquela altura ele me percebia (percebia e estimulava fortemente, diga-se). Chamei-lhe ´duvidas’ mas talvez fossem muito mais que isso, já que se desenrolavam em torno dos sonhos, das perplexidades e até das ambições frustradas que atormentam todas as adolescências e que também a mim, naquela altura, me faziam vacilar entre o discreto ofício desempenhado na paróquia, e o ‘enfant terrible’ sempre disposto a provar os ‘pecados’ mais inconfessáveis. Não todos, só alguns. Os quais me via depois aflito para expiar nas infindáveis novenas a que a confissão invariavelmente me condenava.

Dito por outras palavras, eu devia ser realmente um bom cristão. Sobretudo quando comparado com alguns outros com que ao tempo tive ensejo de privar. Muitos deles mais activos que eu, cómoda e ‘nababamente’ (a palavra não existe, eu sei, mas queria que se entendesse, que nem nababos) naqueles grupos e movimentos que sempre gravitam em torno da igreja católica.  Mas, adiante que isso agora não interessa para nada.

Foi assim que a porta da minha adolescência veio então a abrir para uma vida mais centrada numa imensa gama de prazeres, muitos deles até ali ainda não totalmente descobertos, que viriam, a partir daí, a ser refinados pela ajuda de uns quantos amigos e, de novo, pela mão orientadora de dois professores de liceu. Um da disciplina de Português (claro), já falecido há muito; e outro (não vale rir) de Religião e Moral, que ainda hoje faz o favor de ser meu bom amigo, função esta que acumula com a de ex-pediatra da minha filha, actualmente dos meus netos.  

Bom, pelo meio disto, e até porque precisamente os meus netos um dia podem vir a ler estas desgraças, passo a omitir (conscientemente, é óbvio) as tropelias que a vida então me ofereceu. Umas, porque ditas acima do murmúrio, ao ouvido, seriam bem capazes de escandalizar as mentes mais castas. Outras, porque dizem de mim o que não me parece próprio deixar-vos saber assim, sem a ajuda de um desfibrilador por perto (sorriso cândido).

Ora, dizia eu, comprova-se não ter resultado deste percurso um espécime humano tão dotado de bondade como seria suposto. Diria até, que saiu dali um produto com defeito reconhecido (e irreparável, pelos vistos) no mecanismo do bem.

E tanto assim é que, dou hoje por mim a travar lutas sem quartel contra essa dita imperfeição que faz com que, por exemplo, nos funerais a que vou, não seja eu o primeiro a avançar quando é convidado um dos presentes  para ler as citações do evangelho (um qualquer, tanto faz, são todos tão fúnebres naquelas alturas) que melhor se apliquem aos falecidos. A mesma imperfeição  que me impede de dar a outra face (ou seja lá que parte do corpo for) depois de já ter apanhado um valente estaladão na primeira delas. Isto no ingénuo pressuposto de apenas termos duas faces, o que me parece ser uma coisa do domínio do engano puro e simples. Eu, pelo menos, devo ter para aí umas oitenta, ou mais. Mas, adiante. Voltemos às imperfeições.

É que aqui, sobretudo aqui, neste aspecto da enganação, sente-se mais que em qualquer outro caso o meu deficit de bondade, repetidamente sublinhado pelas mais diversas e mundanas ocorrências do meu quotidiano. Quer seja quando me deparo com aqueles casos, mais flagrantes, de entoadas loas, cantadas por alguns arautos da ‘boa política’ (esquerdalhos ou de direita, é igual, já que nada os difere quando se trata de se acharem melhores uns que outros) nas suas vidinhas tão cheias de ‘telhados de vidro’. Quer quando, também no meu dia-a-dia, vislumbro aquela outra rapaziada da minha geração, todos angelicamente vestidos de anjos,  outrora uns belos pulhas, muitos deles até com vergonhosos passados, que mesmo incapazes de nos olharem nos olhos, não deixam de se comportar como se as narrações dos seus registos criminais mais não relatassem do que faltas à catequese. E não é o que relatam, que eu sei. Não é e causa-me uma profunda urticária (e eczemas, e má disposição, e vómitos, causam-me tudo em suma) quando, nos vazios da vida, encontro muitos deles no desempenho de cargos (ou apenas, lugarzinhos) onde a sua travestida honestidade finge tratar das maleitas do mundo, ou amenizar o sofrimento daqueles a quem (noutros tempos) já roubaram o pão que lhes matava a fome.

E aqui dirão vocês: coitados, podem ter-se arrependido. Estou mesmo, mesmo a ouvi-los dizerem-no assim, num misto de piedade e compaixão. E eu, ao suspeitá-lo, por muito que discorde, hei-de concordar que é verdade sim. Podiam ter-se arrependido, de facto. O que não podem mesmo, e jamais lhes podia ser permitido, é vestir as asas de anjinhos e, procurando o palco, fazer questão de mostrar ao mundo a pureza  (essa sim destinada aos anjos) de que não são feitos. Aqui na terra, no céu, ou até no inferno das suas consciências, o que eles nunca deixarão de ser é perigosos. Gente fingida, que esconde a vida que teve, deixando que sobre aquela que agora levam flutue um bruaá de imaculadas pessoas impossível de sobreviver à realidade dos seus criminosos passados.  

Não me levem a mal, mas é superior à minha dignidade, ver tanto canalha ser tratado assim, por quem os desconhece, como cordeiros inocentes dos piores pecados da  vida. A minha apertada noção da relatividade (e da decência) humana, que a idade me tem vindo a acentuar cada vez mais, é uma escolha não negociável. Sou dos que acham que a paisagem humana que mostramos está incondicionalmente tatuada pelo nosso passado. Mais ainda quando são um embuste as qualidades humanas que hoje exibimos, e que, queiramos ou não, concorrem com a realidade. É uma pena, eu sei, mas praticar tai chi (como eu faço) não me confere, só por si, um rótulo de bondade universal.   

Há, que eu sei, muitas maneiras de ser solidário e de fazer o bem. É verdade que sim. Porém, a minha (assumida) incapacidade de bondade não contempla esta, de ignorar o mal só porque quem o cometeu se simula indefeso (um dia destes até vi um na TV, vestido de pop star, imagine-se bem, fazendo-se de vítima perante os milhões de circunstantes que furtou, como eu, ou como vocês que com paciência ainda aqui estão a ler-me), certamente na esperança de perdão pelos delitos que não pagou.

Afinal, sendo por isto também, não é apenas por isto que eu não personifico a bondade sem fim. É que o único símbolo de bondade que conheço está no coração, não nos encenados actos a que nos entregamos quando fazemos questão de parecer o que não somos, nem nunca seremos. Parvo, no caso que a mim me toca. Se é que me faço entender?! 


* Começa bem o ano, sim senhor, com tão perturbante viagem aos alinhavos da existência humana. Isto promete.