Há uns dias que ando tentado a voltar a Virgínia Woolf. Àqueles diálogos em que me
desconcerta com o brilhantismo e concisão das suas ideias. O pior é que ela
pertence ao abrangente grupo das minhas preferências literárias pelas quais
depois de passar fico que tempos sem mão. Sem mão, sem dedos, sem pulso. Sem tudo.
São daquele género de autores que castram como tesouras afiadas. Lê-los é ficar
impotente. Um mês ou dois, pelo menos. Depois, só à custa de umas quantas
noites ali pelos bares de alterne da Duque de Loulé, com a ajuda (terapêutica,
bem se vê) dalgumas das meninas brasileiras mais competentes a ressuscitar
mortos, é que lá volto a conseguir que a imaginação me dê corpo e tom à
escrita. Ou isso ou uma valente ‘buba’ com vinho tinto marado, que é também
muito eficaz passado que esteja o período de etílica euforia e a correspondente
ressaca, de três dias.
sábado, 31 de janeiro de 2015
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
ledo engano
A minha parca inteligência não é capaz de atingir
porque é que são cada vez mais aqueles que, precisando de nós, acham que
simulando uma cumplicidade que não temos (nem nunca tivemos), melhor conseguem
o que querem. É uma coisa do domínio do engano puro e simples. Alguns, pobres
diabos, tão incomodados se sentem que é vê-los a amuar como crianças a quem se negou
um brinquedo. No entanto, a ideia com que fico é que confundir amizade com ‘gajos
porreiros’ é como confundir as semelhanças tão diferentes do querer com o
desejar.
terça-feira, 27 de janeiro de 2015
atitude crítica (todo o prazer tem ressaca)
Fazendo um percurso destes é
inevitável que se colham alguns reparos. Tenho para com todos a mesma postura.
De quem olha a realidade com lucidez e, acima de tudo,
conhece (bem) as suas limitações.
É
por isso, ainda que no caso se trate apenas de brincar com palavras, perfeitamente ciente do óbvio que é haver quem
o faça melhor do que eu, que procuro nos confins da minha mais funda
consciência a justificação que me ocorre: se te dá prazer, mesmo não o sabendo
fazer bem, limita-te a fazer o
que sabes.
segunda-feira, 26 de janeiro de 2015
arrojo, audácia, desprezo pela vida
Da mesma maneira que seria capaz
de, um a um, enunciar os livros que serviram de alicerce para a minha vida,
também sou capaz de vos dizer que esta semana, na FNAC, enchi-me de coragem (arrojo,
audácia, desprezo pela vida) e peguei num livro do José Rodrigues dos Santos.
Uma folha. Duas folhas. Três folhas. E…
…foi o suficiente para confirmar que
não estava a ter um pesadelo. Ufff!
sábado, 24 de janeiro de 2015
a ilusão é o maior de todos os prazeres *
Tenho ideia de que quanto mais acreditamos nas coisas mais elas se
revelam ilusórias.
* (O título deste post é do Senhor Oscar Wilde. O resto sou eu a pensar.)
sexta-feira, 23 de janeiro de 2015
substituta legal
Ligou como se quisesse
fazer-me um relato relevante. Mas não era isso que queria, depressa deixou
perceber. Ainda assim, como quem quer criar ambiente, contou-me, por duas
vezes, a mesma coisa. Uma parvoíce qualquer que alguém pôs na minha boca. Finalmente, respirando fundo, lá
teve coragem de dizer ao que vinha:
-Já leu o orçamento?
Que não, disse-lhe eu esperançado
que ficasse por ali a sua tentativa. No entanto, sem desistir, voltou em força.
Falou-me das muitas ‘alterações’ que o preceito trazia, ainda que sem ter conseguido
acertar numa só que fosse. Talvez por isso, mesmo já não sendo nova para mim
toda aquela vasta ignorância, senti-me condoído com a revelada dificuldade de interpretação.
Às tantas, cansado por tanto
desconhecimento, até eu senti vontade de lhe dizer que afinal tinha mesmo lido a
dita disposição legislativa. Mais, que devíamos ambos tê-la lido, ainda que
versões diferentes, a avaliar pelos disparates que acabava de lhe ouvir.
Resisti, contudo, e não lhe
disse nada. Prometi apenas que uns dias depois, logo que o lesse, lhe
telefonava para voltarmos a falar. Então, olhando pelo retrovisor,
certifiquei-me que o meu neto não me tinha ouvido mentir e continuava distraído, ainda a ver a o livro recém comprado.
Por fim, fechando os olhos
por breves segundos, voltei a por o carro a trabalhar ao mesmo tempo que pensava no
infindo desacerto que cabe numa só palavra – substituição.
É sempre uma surpresa perceber que a há casos em que a burrice consegue ser quase inimputável. E, pior que isso, é paga.
quinta-feira, 22 de janeiro de 2015
misérias humanas
Nos tempos que correm miséria já não é sinónimo de
pobreza ou de necessidades. De falta de recursos económicos ou de subsistência.
Miséria é hoje a triste figura que por aí se vê
fazer àquela gente sem existência quotidiana, sem entusiasmo de viver, que vai
aos facebooks de certos trafulhas convicta que comentar ou gostar de tudo o que
os parvos lá coloquem tem outro nome que não seja exibicionismo ignorante.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
matrona
Não o sabendo assumir nem lhe sendo suficiente o
corpo disforme com que os antidepressivos a moldaram, ela insiste em exibir as
fotos da sua já longínqua adolescência. Quase todas ao lado das 'vedetas' de que foi
manager, ou algo assim, parecido com isso. Porém, agora, talvez esquecida que
não há retorno para a beleza quando se torna feia, apela ao nosso esquecimento,
vestindo nessas fotos desbotadas pela idade os números abaixo que a gordura não
alargou. E, certamente achando que não é
pouco, quando fala da vida que vive, diz que tem curtido bué, que tem gramado
umas cenas que tem controlado e que tem sido fixe atinar com o pessoal com quem
tem fumado umas ganzas. É assim que passa o tempo, ignorando os seus agentes
implacáveis, impante e rancorosa, evitando os ventos cuja direcção nunca soube interpretar.
terça-feira, 20 de janeiro de 2015
meu rico país!
E
eis que, em pleno século XXI, quem se debruce à nossa escancarada janela e se
disponha a espreitar para dentro deste país, depressa irá perceber que nunca
antes uma democracia foi um jogo tão viciado e tão imoral. E logo nós que já
fomos tão bons nos Jogos Sem Fronteiras. Louvado seja!
Enfim! Um país não é
apenas aquilo que é, mas também o que parece aos olhos dos outros.
domingo, 18 de janeiro de 2015
um arrepio de solidão
É
na flor dos seus sessenta anos que aqui a trago. Vive só, sem rendimentos de
qualquer natureza que não sejam os magros trocos que sobram da pensão da mãe.
Isto, é claro, depois de pago o lar onde a velhinha senhora vegeta há anos. É, pois,
entre a sua humilde casa e o lar que acolhe a mãe, numa acamada e profunda
dependência, que decorre a sua vida. Acorda só e é só que se há-de deitar. Tudo
o mais é esse nada que extrai da solidão em que vive. As tardes passadas no lar
à cabeceira da mãe a quem dá o almoço, e até o lanche, às vezes. Depois, de
volta a casa, faz de metro ou a pé o trajecto entre os dois locais em que
acontece o seu viver. Um brilho triste e húmido a cobrir-lhe os olhos ao mesmo tempo que na
sua frente um pombo esvoaça sem rumo. Sinais de uma esperança onde nada
acontece, a extinguir como chama soprada pelo vento (que tudo leva) os momentos do dia que lhe faltam viver, entre os quais já só cabe vazio. Já em casa, um telefonema a uma amiga que lhe
assegure duas horas de conversa. (Quando o telefone toca e lhe percebo a voz é
um grito que pede que o escutemos aquilo que melhor se ouve.) Depois, na
companhia das novelas da noite, o esperar que a dor do isolamento lhe entorpeça
mais a mente que o corpo e a leva à reconfortante modorra do sono.
Lá para trás, no que foram uns esparsos riscos
a cores com que a vida lhe coloriu uns
meses de pobreza afectiva, ficou um namoro com um canalha que tantas vezes a
abandonou e a desprezou quantas as que a procurava semanas depois. Pedindo
desculpa, dizendo-se arrependido e encurtando tempo para o dia em que, de novo,
havia de a deixar. Assim, sem mais. Quer dizer, sem mais não: trocando-a por
outra. Que é como diz, dando à história que vos relato o desfecho a que já todos
estamos habituados. Ela só, sem ninguém. Ele já envolvido na nova relação, a
continuar a tentar atraí-la para vértice do triângulo que certamente lhe
agradaria formar. E é daqui, desta triste narrativa que, talvez por acaso ou por
outras ocultas razões, sempre se sabe bem como começam mas nunca se imaginam
como acabam, que todos os santos dias parte esta alma para mais um dia. Umas
vezes em busca de companhia e outras apenas para fugir à solidão.
Contudo, o
que a mim me preocupa (com a razão que espero que o futuro não se encarregue de
confirmar) é a quantidade de vezes que já lhe ouvi dizer: só estou à espera que
ela morra.
sábado, 17 de janeiro de 2015
realidade(s)
Atrás de ti virá quem melhor de ti fará.
(Raios! Eu acho que o ditado não era assim, mas, vá lá saber-se
porquê, há sítios onde estão sempre a mudar as realidades. É uma coisa…)
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
da escassez de horizontes à rotina feita de plágios
Impressiona que
nunca antes tanta gente tenha disposto de tais condições para, aqui chegados,
formarem opinião e dela fazerem o melhor dos usos. No entanto, é o que se sabe.
A realidade não muda. Ler é costume que se perdeu. Colectar informação é hábito
que não se alcança. Pior mesmo só deixar perceber que fruindo deste ambiente
que é a net, essa fonte de conhecimento (a leitura) tenha sido banida de tantas vidas.
E, como se não bastasse tal tristeza, mais estranho ainda é concluir que isso
não acanha a renovada condição dalguns
palermas que por aqui andam, sem outra preocupação que não seja o comezinho copy paste (copiar e colar).
Ele é
notícias, estudos, análises, pareceres, apreciações ou outros considerandos. Há
de tudo por estas bandas, na mais acessível das disponibilidades. É só querer. Trazer
ideias feitas não é mal que aqui não colha resolução. Consultar alguns dos que
também por cá as emitem é, em regra, suficiente para que assim possamos validar
as nossas. Testar-lhes a força. Submetê-las à dúvida ou ao engano. E feito
isto, então sim, bem se poderá dizer: esta opinião advém de um registo de interesses
que tomei por racional - este, aquele e aqueloutro.
Contudo, aquilo a que
mais se assiste é precisamente o contrário. Num autismo desfasado a que não
chamo indiferença nem eu sei bem porquê, quem aqui chega logo trata de dizer de
si. Uns balbuciam umas ideias nascidas do seu ilustrado vazio. Outros, de tanto
e tão desesperadamente quererem fazer parte desta nova realidade, limitam-se a
impiedosos disparos de distanciada pontaria que pouco mais atingem do que a
lama em que espezinham. A maioria copia e cola. Fá-lo sem rasgo. Sem nada
acrescentar ao espaço que ocupa e assim consome. (Sim, eu sei que há quem diga
que o plágio só é grave quando não melhora o produto copiado. Mas, que diabo, para
tudo há limites. Não há?)
Nos tempos que correm aquilo que realmente
impressiona é como a tantos escape que qualquer agitador (ou provocador, ou
comentador ou seja lá o que queiram chamar-lhe) que se preze sempre deva propor
alternativa, ao questionar aquilo que o indigna. Ou, sendo político, mesmo
não sabendo do que fala, como depressa se percebe quando o fazem, não há como
oferecer à evidência do desconhecimento uma boa pitada de esclarecida
informação.
É que, abarcando todos estes interesses, já bem
bastam as certezas que os estudos sociais nos põem na frente dos olhinhos.
Dizem elas que estamos todos a ficar mais estúpidos, e mais sós, por causa dos
computadores e da internet.
Oh que caraças!
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
amigos das horas boas
Houve um tempo em que achei que talvez não voltasse
a encontrar o caminho de volta à paz que tanto ansiava. Sentia-me sitiado por interesses.
Vivia rodeado de falsos amigos. Daqueles que só apareciam quando precisavam, ou
para almoços e jantares de favor. Não tenho memória de ter visto algum deles
nas horas más que até hoje tive de enfrentar. Então, há quase três anos, numa longa noite de Inverno, adormeci a congeminar a decisão
que haveria de mudar a minha vida. De tal sorte que, às oito da manhã do dia
seguinte, cem quilómetros depois, ela estava definitivamente tomada. Só os que
me eram íntimos souberam, informados um a um, com o pedido de que nada relevassem
durante os dois anos que levaria a pô-la em prática. Assim foi, de facto. E, tal como previsto, quando finalmente a alcancei, há cerca de um ano, uns quantos daqueles me vieram questionar: por que razão é que nunca lhes dissera? A muitos
nem resposta dei, confesso. A outros, pouquíssimos, ainda me dei ao trabalho de
lhes explicar que estavam enganados. Não tinha sido eu que não lhes dissera,
tinham sido eles que nunca quiseram saber. E foi daí, do semblante carregado de
embaraço, tal como do rubor da face e do nó que lhes persenti na garganta, que eu
colhi, então, o prémio maior – vê-los assim. Pequeninos, a digerir essa espécie
de mensagem (de dolorosa verdade) que acabava de lhes sair no ‘fortune cookie’
do almoço no restaurante chinês. Hoje, salvo algumas (raras) excepções, já são
residuais os que ainda ousam por
os olhinhos fora do lodo, certamente à espera da imprevidência de me verem
devolver-lhes os ridículos toques que me dão pelo facebook, ou de encontrarem
eco para os emails carregados de banalidade com que tentam arrancar-me uma
reacção. Hoje, um ano depois da lição que mediou este meu percurso até aqui,
posso finalmente dizê-lo – alcancei a paz. Muitos ou poucos, os amigos que sobreviveram
possuem (todos eles) o selo de garantia de terem passada no crivo (uma espécie
de pré-inspecção) em que ficaram retidos os outros, os tais das horas boas.
Por isso, ciente de que seria injusto terminar isto sem vos dizer obrigado,
deixo-vos, a todos vós, o meu reconhecido (e abraçado) agradecimento.
sábado, 10 de janeiro de 2015
gato sapato
Dez dias passados e isto. Para lá, para cá, o Janeiro monótono como um pêndulo, apostado em ser como o Dezembro e os outros
que o antecederam. Eu, porém, determinado, faço dele o que a vida tem vindo a
fazer de mim, de há uns meses a esta parte – gato sapato.
quarta-feira, 7 de janeiro de 2015
mas afinal de que é esta gente gosta realmente, hein?
O ser humano é muito
pouco sensato. Daí que tanto seja capaz de mostrar o seu apreço por aspectos fáceis
de admirar, tais como um dia de sol, ou uma noite de luar, como por outros de impossível
agrado: alguém que luta contra a doença, um idoso que morre de frio, as
campanhas dos tetraplégicos. Enfim, um nunca mais acabar de possibilidades.
É assim que,
passeando por aqui, por entre bocejos que se repetem dia após dia, deparo sempre (sublinho o ‘sempre’) com os
mesmos likes. Morreu fulano de tal, RIP’s e likes com fartura; caiu um avião
não sei onde, mais um monte de likes; a criancinha desaparecida, vá mais uma
molhada deles; o cão perdido que os donos procuram, outros tantos gostos.
Há likes tão (ou mais) imprevisíveis como decepções. O pior é que, a
coberto de tão falsos critérios e perante tanta subjectividade, o resultado
final soa ainda mais fingido. E, como se não bastasse, piora ainda quando pelo
meio daqueles se deviam deixar, e não deixam, uns molhos deles nas causas que
realmente os mereciam.
É de tal maneira que se chega a uma altura em que pertinazmente temos de perguntar: mas afinal de que é esta
gente gosta realmente, hein?
Portanto, com isto, a conclusão lógica é que acabo sempre a comparar
estas minhas digressões, por aqui, com os passeios que tenho por hábito dar nos
espaços públicos cá do bairro. Onde, por muito que me incomodem os incontáveis
montinhos de estratos de fezes com que os canídeos fazem questão de adubar a
relva dos jardins, não me adianta protestar com os seus donos quando os vejo
aliviar as trelas para permitir que os pobres animais os façam.
É que, num caso como no outro, eu sei (e eles se calhar também), é inteiramente
impossível pegar num pedaço de merda pelo lado limpo.
segunda-feira, 5 de janeiro de 2015
indiferenças que o tempo traz consigo
Depois
de ter exercido uma profissão repleta de fantasmas bastaram-me uns meses nesta
ilha de silêncio e indiferença onde me refugiei, sem conviver com essa gente que
finge que não está a fingir, que entra e sai das nossas vidas em função das
suas precisões, especializados em relações (e só nessas) em que o retorno lhes
possa ser útil, para perceber quem possui realmente a importância que lhe dou (ou dei,
ou dava, deixo à escolha).
É assim, feliz (digo-o sem cultivar ressentimentos),
longe desse território de fronteira entre a lucidez e a ilusão, que eu hoje me
movo, apenas e só, no meio dos que comigo partilham mais do que pedem.
Claro que, aqueles
que por força desta alteração vão passar (muitos já passaram) a ter de bater a
outras portas, não devem estranhar quando perceberem que por estes lados se
fechou o caminho do oportunismo.
sábado, 3 de janeiro de 2015
perguntas sem resposta (todas)
Que mania esta da falsificação.
De querer disfarçar as nódoas fazendo tão triste figura. Que mania esta de
pensar que o alcanço quando, por breves instantes, o melhor que consigo é
iludir a fadiga. Sim, que quererei eu esconder quando mesmo em silêncio falam
por mim as palavras que aqui deixo numa berraria de ensurdecer? És capaz de me
dizer? Que espero eu destas horas e horas, lentas e arrastadas, em busca do meu
destino? Não me dizes? Quem me traz de volta o tempo que encurto aos prazeres
da vida e que mais e mais me aproxima do pequeno final que é a inutilidade da
morte? Já pensaste nisso?
E eu ali fiquei, naquilo,
a pensar, sem que nenhuma resposta me satisfizesse por inteiro. A confirmar nas
palavras que escrevo que este não é quem eu penso ser, não é quem eu queria que
fosse.
Afinal,
já não sei quem foi que disse, comprova-se, de facto, a semântica é como a cosmética, pode disfarçar um
problema mas não o trata.
sexta-feira, 2 de janeiro de 2015
ontem futuro, hoje passado
E pensar que ainda ontem acabei de virar a folha de um calendário de
argolas que demorou doze meses a virar, quando, afinal, a cada segundo que passa o tempo se torna ruínas de um presente já vivido a que chamamos passado.
Enfim, que fazer se todo o futuro está dependente do agora?!
quinta-feira, 1 de janeiro de 2015
exibicionistas da bondade *
Não me devem os
meus progenitores ter talhado para ser a boa pessoa que vejo noutros. Educado
na fé católica, onde fiz muito para lá do percurso próprio então exigido aos
meus pares - baptismo, catequese, todas as comunhões e mais algumas, catequista
e até sacristão – veio a ser pela mão hábil de um dos padres a cujo ministério
ajudei que, mais tarde, vim a ser orientado para seguir uma vida menos exposta
às ‘dúvidas’ que já naquela altura ele me percebia (percebia e estimulava
fortemente, diga-se). Chamei-lhe ´duvidas’ mas talvez fossem muito mais que
isso, já que se desenrolavam
em torno dos sonhos, das perplexidades e até das ambições frustradas que
atormentam todas as adolescências e que também a
mim, naquela altura, me faziam vacilar entre o discreto ofício desempenhado na
paróquia, e o ‘enfant terrible’ sempre disposto a provar os ‘pecados’ mais inconfessáveis.
Não todos, só alguns. Os quais me via depois aflito para expiar nas infindáveis
novenas a que a confissão invariavelmente me condenava.
Dito por outras
palavras, eu devia ser realmente um bom cristão. Sobretudo quando comparado com
alguns outros com que ao tempo tive ensejo de privar. Muitos deles mais activos
que eu, cómoda e ‘nababamente’ (a palavra não existe, eu sei, mas queria que se
entendesse, que nem nababos) naqueles grupos e movimentos que sempre gravitam em torno da igreja
católica. Mas,
adiante que isso agora não interessa para nada.
Foi assim que a
porta da minha adolescência veio então a abrir para uma vida mais centrada numa
imensa gama de prazeres, muitos deles até ali ainda não totalmente descobertos,
que viriam, a partir daí, a ser refinados pela ajuda de uns quantos amigos e,
de novo, pela mão orientadora de dois professores de liceu. Um da disciplina de
Português (claro), já falecido há muito; e outro (não vale rir) de Religião e
Moral, que ainda hoje faz o favor de ser meu bom amigo, função esta que acumula
com a de ex-pediatra da minha filha, actualmente dos meus netos.
Bom, pelo meio disto, e até porque precisamente os meus netos um dia
podem vir a ler estas desgraças, passo a omitir (conscientemente, é óbvio) as
tropelias que a vida então me ofereceu. Umas, porque ditas acima do murmúrio,
ao ouvido, seriam bem capazes de escandalizar as mentes mais castas. Outras,
porque dizem de mim o que não me parece próprio deixar-vos saber assim, sem a
ajuda de um desfibrilador por perto (sorriso cândido).
Ora, dizia eu,
comprova-se não ter resultado deste percurso um espécime humano tão dotado de
bondade como seria suposto. Diria até, que saiu dali um produto com defeito
reconhecido (e irreparável, pelos vistos) no mecanismo do bem.
E tanto assim é
que, dou hoje por mim a travar lutas sem quartel contra essa dita imperfeição
que faz com que, por exemplo, nos funerais a que vou, não seja eu o primeiro a
avançar quando é convidado um dos presentes para ler as citações do evangelho (um
qualquer, tanto faz, são todos tão fúnebres naquelas alturas) que melhor se
apliquem aos falecidos. A mesma imperfeição que me impede de dar a outra face (ou seja lá que
parte do corpo for) depois de já ter apanhado um valente estaladão na primeira
delas. Isto no ingénuo pressuposto de apenas termos duas faces, o que me parece
ser uma coisa do domínio do
engano puro e simples. Eu, pelo menos, devo ter para aí umas oitenta, ou mais.
Mas, adiante. Voltemos às imperfeições.
É que aqui, sobretudo aqui, neste aspecto da enganação, sente-se mais que em qualquer outro caso o meu deficit de bondade, repetidamente sublinhado pelas mais diversas e mundanas ocorrências do meu quotidiano. Quer seja quando me deparo com aqueles casos, mais flagrantes, de entoadas loas, cantadas por alguns arautos da ‘boa política’ (esquerdalhos ou de direita, é igual, já que nada os difere quando se trata de se acharem melhores uns que outros) nas suas vidinhas tão cheias de ‘telhados de vidro’. Quer quando, também no meu dia-a-dia, vislumbro aquela outra rapaziada da minha geração, todos angelicamente vestidos de anjos, outrora uns belos pulhas, muitos deles até com vergonhosos passados, que mesmo incapazes de nos olharem nos olhos, não deixam de se comportar como se as narrações dos seus registos criminais mais não relatassem do que faltas à catequese. E não é o que relatam, que eu sei. Não é e causa-me uma profunda urticária (e eczemas, e má disposição, e vómitos, causam-me tudo em suma) quando, nos vazios da vida, encontro muitos deles no desempenho de cargos (ou apenas, lugarzinhos) onde a sua travestida honestidade finge tratar das maleitas do mundo, ou amenizar o sofrimento daqueles a quem (noutros tempos) já roubaram o pão que lhes matava a fome.
É que aqui, sobretudo aqui, neste aspecto da enganação, sente-se mais que em qualquer outro caso o meu deficit de bondade, repetidamente sublinhado pelas mais diversas e mundanas ocorrências do meu quotidiano. Quer seja quando me deparo com aqueles casos, mais flagrantes, de entoadas loas, cantadas por alguns arautos da ‘boa política’ (esquerdalhos ou de direita, é igual, já que nada os difere quando se trata de se acharem melhores uns que outros) nas suas vidinhas tão cheias de ‘telhados de vidro’. Quer quando, também no meu dia-a-dia, vislumbro aquela outra rapaziada da minha geração, todos angelicamente vestidos de anjos, outrora uns belos pulhas, muitos deles até com vergonhosos passados, que mesmo incapazes de nos olharem nos olhos, não deixam de se comportar como se as narrações dos seus registos criminais mais não relatassem do que faltas à catequese. E não é o que relatam, que eu sei. Não é e causa-me uma profunda urticária (e eczemas, e má disposição, e vómitos, causam-me tudo em suma) quando, nos vazios da vida, encontro muitos deles no desempenho de cargos (ou apenas, lugarzinhos) onde a sua travestida honestidade finge tratar das maleitas do mundo, ou amenizar o sofrimento daqueles a quem (noutros tempos) já roubaram o pão que lhes matava a fome.
E aqui dirão vocês:
coitados, podem ter-se arrependido. Estou mesmo, mesmo a ouvi-los dizerem-no assim, num misto de piedade e compaixão. E eu, ao
suspeitá-lo, por muito que discorde, hei-de concordar que é verdade sim. Podiam
ter-se arrependido, de facto. O que não podem mesmo, e jamais lhes podia ser permitido,
é vestir as asas de anjinhos e, procurando o palco, fazer questão de mostrar ao
mundo a pureza (essa sim destinada aos
anjos) de que não são feitos. Aqui na terra, no céu, ou até no inferno das suas
consciências, o que eles nunca deixarão de ser é perigosos. Gente fingida, que
esconde a vida que teve, deixando que sobre aquela que agora levam flutue um
bruaá de imaculadas pessoas impossível de sobreviver à realidade dos seus
criminosos passados.
Não me levem a
mal, mas é superior à minha dignidade, ver tanto canalha ser tratado assim, por
quem os desconhece, como
cordeiros inocentes dos piores pecados da
vida. A minha apertada noção da relatividade (e da decência) humana, que
a idade me tem vindo a acentuar cada vez mais, é uma escolha não negociável.
Sou dos que acham que a paisagem humana que mostramos está incondicionalmente tatuada
pelo nosso passado. Mais ainda quando são um embuste as qualidades humanas que
hoje exibimos, e que, queiramos ou não, concorrem com a realidade. É uma pena,
eu sei, mas praticar tai chi (como eu faço) não me confere, só por si, um
rótulo de bondade universal.
Há, que eu sei,
muitas maneiras de ser solidário e de fazer o bem. É verdade que sim. Porém, a
minha (assumida) incapacidade de bondade não contempla esta, de ignorar o mal só
porque quem o cometeu se simula indefeso (um dia destes até vi um na TV,
vestido de pop star, imagine-se bem, fazendo-se de vítima perante os milhões de
circunstantes que furtou, como eu, ou como vocês que com paciência ainda aqui estão a ler-me), certamente na esperança de perdão pelos delitos que não pagou.
Afinal, sendo
por isto também, não é apenas por isto que eu não personifico a bondade sem
fim. É que o único símbolo de bondade que conheço está no coração, não nos
encenados actos a que nos entregamos quando fazemos questão de parecer o que não
somos, nem nunca seremos. Parvo, no caso que a mim me toca. Se é que me faço
entender?!
* Começa bem o ano, sim senhor, com tão perturbante viagem aos alinhavos da existência humana. Isto promete.
Subscrever:
Mensagens (Atom)