É lá que passa os dias. Entre a porta e a cama de metal,
desfeita, onde apenas um edredon, sujo, sem capa, sobre um lençol amachucado, sebento,
tatuado pelo corpos que o usam. A filha distante, fugida há muito daquele
sofrimento, indiferente aquele desacerto. A neta raramente a vê, como é próprio
de quem também assim cresceu. Laços sabe fazê-los como ninguém, com a mesma
facilidade com que os desfaz, dias depois, às vezes, já tem acontecido, uma semana, ou um mês, pouco
importa quando. O tempo que o engano leva a revelar-se é a medida certa. Aos
que chama amigos traça o contorno, anda em redor, mede as posses, esmola e
acosta-se até que dê. Por vezes nem lhes cobra. Pagam em géneros. Às amigas faz
o mesmo, mostra-se simpática, paciente para os filhos, até que lhes leva os
namorados, lhes suga os maridos. Batem à porta. Outra marcação. Desliga o
tablet. Abre-a em seguida quase ao mesmo
tempo que acende o rádio.
- Olá, como estás, há muito que não aparecias.
Estamos a meio do mês, são mais esparsas as solicitações.
É nesta altura que os artifícios ganham cor. No perfil do facebook actualiza o
curriculum, muda as fotos, culpa a Segurança Social, cola-se a outros
desamparos na esperança que a confundam. Ou que dela tenham pena, tanto faz. Pelo meio, já é costume, mais um ou outro imprevidente.
Tudo serve. Uma sopa, um almoço, lanchamos se quiseres, dez euros para o
gasóleo. Meia hora passada, feito o que havia a fazer, o telefone que toca, a
oportunidade aproveitada.
- Deixa-me atender, pode ser a minha filha.
Não era. Meias palavras, um diálogo breve, pouco a dizer.
- Sim, é boa hora às onze, eu vou.
De volta à vida. O fruir da ocasião.
- Era a filha, desculpa, vou ter de sair, queres ir
lavar-te? Para a próxima ficamos mais tempo, prometo.
Pede perdão da pressa, não da mentira. Desliga o rádio. Mudam
de mão as notas de vinte.
- É para ajuda do quarto, - diz-lhe ele beijando-a na face.
Porta aberta, porta fechada. De volta ao tablet, duas mensagens, enquanto um
toalhete passado à pressa, um copo de água e um rebuçado. Faltam vinte minutos
e já vestida. Calças e blusa pretas, cor que encobre a sujidade, a contrastar
com o cinza da camisa, por engomar. Sapatos
castanhos, que nunca viram graxa na vida, a pedir capas, reflectindo a imagem
duma miséria mal escondida. Já no elevador, curvada para a frente, dedos por
entre o cabelo, a dar-lhe volume, busca na mala as chaves do carro e a nota de
cinco que lá tinha ontem.
- Oxalá ainda dê tempo para meter gasóleo e comprar uma
sandes de queijo para o almoço - disse a si mesma.
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