quarta-feira, 19 de novembro de 2014

pensão fidelis (1)

É lá que passa os dias. Entre a porta e a cama de metal, desfeita, onde apenas um edredon, sujo, sem capa, sobre um lençol amachucado, sebento, tatuado pelo corpos que o usam. A filha distante, fugida há muito daquele sofrimento, indiferente aquele desacerto. A neta raramente a vê, como é próprio de quem também assim cresceu. Laços sabe fazê-los como ninguém, com a mesma facilidade com que os desfaz, dias depois, às vezes, já tem acontecido, uma semana, ou um mês, pouco importa quando. O tempo que o engano leva a revelar-se é a medida certa. Aos que chama amigos traça o contorno, anda em redor, mede as posses, esmola e acosta-se até que dê. Por vezes nem lhes cobra. Pagam em géneros. Às amigas faz o mesmo, mostra-se simpática, paciente para os filhos, até que lhes leva os namorados, lhes suga os maridos. Batem à porta. Outra marcação. Desliga o tablet.  Abre-a em seguida quase ao mesmo tempo que acende o rádio.
- Olá, como estás, há muito que não aparecias.
Estamos a meio do mês, são mais esparsas as solicitações. É nesta altura que os artifícios ganham cor. No perfil do facebook actualiza o curriculum, muda as fotos, culpa a Segurança Social, cola-se a outros desamparos na esperança que a confundam. Ou que dela tenham pena, tanto faz.  Pelo meio, já é costume, mais um ou outro imprevidente. Tudo serve. Uma sopa, um almoço, lanchamos se quiseres, dez euros para o gasóleo. Meia hora passada, feito o que havia a fazer, o telefone que toca, a oportunidade aproveitada.
- Deixa-me atender, pode ser a minha filha.
Não era. Meias palavras, um diálogo breve, pouco a dizer.
- Sim, é boa hora às onze, eu vou.
De volta à vida. O fruir da ocasião.
- Era a filha, desculpa, vou ter de sair, queres ir lavar-te? Para a próxima ficamos mais tempo, prometo.
Pede perdão da pressa, não da mentira. Desliga o rádio. Mudam de mão as notas de vinte.
- É para ajuda do quarto, -  diz-lhe ele beijando-a na face.
Porta aberta, porta fechada.  De volta ao tablet, duas mensagens, enquanto um toalhete passado à pressa, um copo de água e um rebuçado. Faltam vinte minutos e já vestida. Calças e blusa pretas, cor que encobre a sujidade, a contrastar com o cinza da camisa, por engomar.  Sapatos castanhos, que nunca viram graxa na vida, a pedir capas, reflectindo a imagem duma miséria mal escondida. Já no elevador, curvada para a frente, dedos por entre o cabelo, a dar-lhe volume, busca na mala as chaves do carro e a nota de cinco que lá tinha ontem.
- Oxalá ainda dê tempo para meter gasóleo e comprar uma sandes de queijo para o almoço - disse a si mesma.


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