sábado, 1 de novembro de 2014

as voltas da vida

Pouca coisa me dói como a solidão e abandono em que vivem o Sr. A. e a Dª F.. Octogenários, de quem os filhos se livraram como se fossem lastro, quando há umas dezenas de anos fizeram da emigração a solução para os seus males, deixando-os assim, a despertar diariamente para o brutal efeito do desprezo e do isolamento a que foram condenados.  

Indiferentes às suas privações e necessidades, dedicando aos cães que escolheram ter, em vez de filhos, uma atenção que jamais concederam aos pais, reduziram, aqueles dois emigrados monstros, a uma banal chamada telefónica toda a sua actuação de descendentes.

À distância de um outro continente, afastado milhares de quilómetros, sei-os alerta, sim sei, mas somente na avidez de abutres com que esperam vir um destes dias buscar as sobras que estas duas vidas de miséria lhes possam deixar – o andar em que vivem nos subúrbios da cidade.

Desinteressados do desamparo a que a fome e a falta de acesso às mais elementares condições de saúde destinaram aqueles que os deram à luz, prosseguem esses cruéis estafermos uma vida desafogada de que não faz parte o cuidar, o acarinhar, o calor do beijo ou do apertado abraço à carne da sua carne.

Trocaram o amor de filhos, coisa que obviamente desconhecem o que seja, pela long distance call que lhes aquieta a impiedosa consciência.

Enquanto isso, todos nós os que à dezenas de anos assistimos ao ruir desta vergonhosa arquitectura, partilhamos o desconforto de tentar conseguir que possam estas duas cansadas e sofridas almas,  - pelo menos isso - conservar a dignidade e a decência de não interpretar por caridade as atenções que por reconhecimento de amizade lhes vamos proporcionando. 

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